A INCOMPETÊNCIA DO STF PARA JULGAR PESSOAS COMUNS.
Resta de conhecimento de todos que o Supremo Tribunal Federal (STF) está enredado institucional e emocionalmente nos casos que envolvem o ex-presidente Jair Bolsonaro e os atos ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023. As alegações passam pelo simples fato de que a sede do STF foi alvo de vandalismo e destruição, estando os “culpados” acima citados sujeitos à ira dos ministros da Corte.
Há quem diga que o Supremo quer de qualquer forma punir supostos envolvidos nos atos daquele dia e também o ex-presidente. Mas tudo isso por quê? A que preço? As respostas sensatas devem ser de que não há motivação legal para tanto, sendo de bom tom preservar a legalidade, a Ordem Jurídica e o Estado de direito.
Nesse ponto vale questionar: o STF tem competência para processar e julgar pessoas comuns, sem foro por prerrogativa de função, em ações penais originárias? Tem? Sim ou não? Vejamos o que diz o artigo 102, da Constituição Federal:
Art. 102, CF - “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I) processar e julgar, originariamente: ... b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República”.
O texto constitucional não diz que o STF tem competência para julgar cidadãos comuns e ex-presidente. Mas ainda assim estão sendo julgados, condenados e perseguidos, com instauração incomum de inquéritos. E cumpre notar que, desde o inusitado Inquérito 4781, que foi instaurado para apurar suposta disseminação de fake news e ataques aos integrantes do STF, surgiram outros inúmeros inquéritos, tais como: 4828, 4923, 4919, 4918, 4917, entre outros.
Em alguns desses inquéritos figuram parlamentares sujeitos à jurisdição do STF, o que dá à Corte poderes de investigação sobre eles por disposição do art. 43 do seu próprio regimento interno que diz: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
Porém, à época, o então presidente da República, Jair Bolsonaro, ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 877) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o artigo 43 do Regimento Interno da Corte (RISTF), dispositivo que embasou a abertura do Inquérito (INQ) 4781 para apurar notícias fraudulentas, ameaças e outros ataques feitos contra a Corte, seus membros e familiares, ocorridas em qualquer lugar do território nacional.
A ação pedia a concessão de liminar para suspender a norma do RISTF e, no mérito, a sua não recepção pela Constituição Federal. Para o presidente da República, a aplicação incondicionada do dispositivo pode ser utilizada como fundamento para embasar de forma abstrata a instauração de inquéritos de ofício (sem pedido das partes envolvidas), bastando que se tenha tido notícia de fato atentatório à dignidade da jurisdição da Suprema Corte. Além disso, argumenta que sua aplicação autorizaria a investigação de fatos fora do trâmite comum.
A ação de Bolsonaro apontou violação aos princípios constitucionais do juiz natural, da segurança jurídica, da vedação a juízo de exceção, do devido processo legal, do contraditório, da taxatividade das competências originárias do STF e da titularidade exclusiva da ação penal pública pelo Ministério Público.
Lado outro, ignorando completamente as violações acima referidas, a competência para instaurar inquérito sobre crimes ocorridos nas dependências do STF foi referendada pela ADPF 572, que reconheceu a constitucionalidade das normas regimentais que dispõem sobre o Poder de Polícia da Corte.
Ora, não se está aqui a discutir se o Supremo pode investigar delitos ocorridos nas suas dependências. Mas pode o mesmo Supremo julgar pessoas sem prerrogativa de foro, em ações penais que se originam na Corte?
A alegação pouco convincente do Supremo é de que as ações envolvendo pessoas comuns derivariam de inquéritos que envolvem pessoas com prerrogativa de foro (parlamentares). Assim, os princípios da conexão e continência, segundo os artigos 76 e 77 do CPP, admitem a competência da Corte, como previsto na Súmula 704, que diz: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.
Com certa resistência, entendo que a aparente conexão e continência parece operar de plano e justificar a competência do STF para o caso. Todavia, é preciso analisar que a competência para julgamento do STF em casos de delitos envolvendo pessoas com prerrogativa de foro só se aplica quando o delito apurado está relacionado com a função desempenhada, como decidido na Questão de Ordem na Ação Penal 937: “O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”. (STF, Q.O na AP 937, Rel. Min. Roberto Barroso, Dje 11.12.18).
Ora, ora, ora! Se existem parlamentares envolvidos nos inquéritos de modo a justificar a atração da competência do Supremo pela conexão e continência, então é preciso aceitar que os delitos imputados, entre eles o de abolição do Estado democrático de direito, têm relação direta com as funções parlamentares, o que seria um brutal contrassenso. Ademais, se o crime é cometido durante o exercício do mandato, somente se aplica o foro especial se for relacionado às funções desempenhadas. Assim, fica superado o entendimento generalista de que todos os crimes cometidos durante o mandato ensejariam o foro especial. (Pimentel, Fabiano. Processo Penal, D'Plácido, 2022, p.426).
Nesse sentido, vejamos o que decidiu o próprio STF: “A imunidade parlamentar pressupõe nexo de causalidade com o exercício do mandato. Declarações proferidas em contexto desvinculado das funções parlamentares não se encontram cobertas pela imunidade material”. (PET 7.174, red. do ac. min. Marco Aurélio, j. 10-3-2020, 1ª T, DJE de 28-09-2020).
Dessa forma, cabe enxergar que a referida imunidade não se estende ao corréu, conforme Súmula 245 do STF: “A imunidade parlamentar não se estende ao corréu sem essa prerrogativa”.
A conclusão que logicamente se chega é a de que os delitos imputados aos réus pelos atos de 8 de janeiro de 2023 não têm nexo com a função parlamentar, de modo que nem eles e nem os parlamentares deveriam ser alvos de ações penais originárias na Corte e o inquérito que originou a ação penal deveria ter sido remetido ao MPF para proceder ou não a denúncia no juízo Federal de Brasília (art. 70, CPP).
A população e a comunidade jurídica brasileira precisam ter maturidade suficiente para ver que o desmembramento das ações, nesses casos, submete-se à analise da conveniência (art. 80, CPP), sendo atribuição do relator decidir monocraticamente: “A decisão pela manutenção da unidade de processo e de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal ou pelo desmembramento da ação penal está sujeita a questões de conveniência e oportunidade, como permite o art. 80, do CPP”. (Inq. 3.412. ED, rel. min. Rosa Weber, 1ªT, j. 11-9-2014, DJE 196 de 8-10-2014).
Importante destacar que, em votos pretéritos no STF, em questão de ordem em ação penal, o vencido foi exatamente o ministro Alexandre de Moraes, relator dos casos envolvendo os fatos do dia 8 de janeiro, e para quem a competência do Supremo para julgar parlamentares incide a despeito da conexão do delito com a função. Ou seja, Moraes ficou vencido na oportunidade, mas continua fazendo valer seu entendimento na prática, de maneira conveniente, ao seu talante, apenas para atender seu interesse pessoal e sua exclusiva vontade.
No caso concreto da denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, que é acusado de liderar uma tentativa de golpe de Estado, alguns especialistas entendem que é robusta, deve causar abertura de um processo criminal contra ele e provavelmente resultará em condenação e prisão. Mas há controvérsias e só o tempo dirá.
No entanto, lá como cá, esse tal julgamento não deveria ocorrer no STF, e sim na primeira instância do Poder Judiciário, haja vista que Bolsonaro não ocupa mais cargo público com foro especial na Suprema Corte.
Destarte, cabe sim contestar a legitimidade do Supremo para analisar a denúncia, assim como está errada a análise do caso pelo ministro Alexandre de Moraes, relator da investigação contra Bolsonaro e outros suspeitos de tentar impedir a posse de Lula. Tudo sob o prisma das alegações, mas sem provas robustas e transparentes para a opinião pública. Impedir a posse como? Cadê as armas, os soldados, os tanques, os aviões, os navios? Ora, bolas, o povo estava vestido de verde e amarelo, nas portas dos quartéis, e nada mais. Os vândalos que invadiram os prédios e praticaram quebradeira devem ser identificados e punidos, e dê-se o assunto por encerrado.
Seria conveniente que, para credibilidade do STF, Alexandre de Moraes se declarasse suspeito, devido ao seu intenso envolvimento na fase investigatória e também por ter sido alvo de um suposto plano do grupo denunciado para matá-lo. Se existiu isso, esse plano, Moraes deveria se afastar do caso. Ademais, se alguém é chamado a tomar várias decisões sobre um certo caso durante um inquérito, e depois esse alguém tem que julgar esse caso, tudo estará contaminado, uma vez que já existirá uma visão preestabelecida desse alguém.
Portanto, a meu sentir, Moraes deveria se declarar suspeito, e assim contribuir para a retidão, a lisura, a transparência e a legalidade regular desse processo. Talvez assim o STF aliviasse as duras críticas de violação do devido processo, que vem recebendo há muito.
Entretanto, sinceramente, diante do quadro dramático que hoje temos, não acredito que o STF ou Alexandre de Moraes recuarão de julgar a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Aliás, já vimos esse filme, posto que inúmeras pessoas sem foro privilegiado já foram processadas e condenadas no STF por “tentativa de golpe” de Estado, em razão das manifestações de 8 de janeiro de 2023.
A conferir, mas as notícias que chegam até o momento são no sentido de que a denúncia contra Bolsonaro deverá ser julgada na Primeira Turma do Supremo, formada por cinco ministros: Moraes, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Cristiano Zanin e Flávio Dino.
Diante da complexidade de um processo criminal desse porte, o trâmite deveria durar vários e vários anos, mas segundo a imprensa, o fim da questão se dará até o fim do ano de 2025, evitando que o julgamento afete as eleições de 2026. Ou seja, o STF parece preocupado com datas e questões políticas, quando deveria se debruçar sobre as lições do Código de Processo Penal e acatar os exatos termos da Constituição Federal. Ora, expectativas com processo eleitoral não combinam com julgamentos que a sociedade espera sejam justos, imparciais e transparentes, cumpridos os ritos, a ampla defesa e o contraditório.
Por fim, diante do exposto, a compreensão jurídica majoritária percebida no país é que tais julgamentos não deveriam ocorrer no STF, e sim na primeira instância do Poder Judiciário, notadamente em razão da incompetência do STF para julgar pessoas comuns.
Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021).
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É incompetente sim para julgar pessoas comuns. É incompetente sim para julgar os manifestantes de 8 de janeiro de 2023 e o Bolsonaro. O STF é incompetente para esses atos e deve respeitar a CF e ponto final. Nossos votos de reconhecimento e nossos parabéns dr. Wilson Campos por seus artigos éticos e equilibrados. Att: RPEG Adv. Associados.
ResponderExcluirO STF não julga os processos da sua alçada e fica só em cima dos casos de 8 de janeiro e de Bolsonaro. Isso é contra a realidade do Judiciário que o povo cobra. Os julgamentos do STF por voto monocrático é um desrespeito da CF. Questões complexas devem ser julgadas pelo plenário, pelo colegiado do STF. Cumpra-se a moralidade necessária ao Judiciário. Urgente! Valeu dr. Wilson Campos por seu posicionamento e por suas manifestações democráticas e éticas como advogado exemplar. Abr. Frederico Jacob.
ResponderExcluirConcordo 100% que o ministro A. Moraes deveria se declarar suspeito, e assim contribuir para a retidão, a lisura, a transparência e a legalidade regular desse processo. Talvez assim o STF aliviasse as duras críticas de violação do devido processo, que vem recebendo há muito. O advogado doutor Wilson Campos falou e disse muito bem e tudo é verdade e é o que pensamos todos nós. Eu e minha família toda pensamos assim também porque a justiça está andando na mão errada da estrada do Brasil. Clotildes Guilhermina S.F.
ResponderExcluirConcordo 100% com o artigo do Dr. Wilson Campos advogado. O STF tem de tratar de questões constitucionais e não comuns da área penal. O STF deve retornar ao tempo em que trabalhava na sua área e sem espetáculo. Trabalhar nos autos dos processos assim como toda Suprema Corte do resto do mundo faz. Parabéns Dr. Wilson;. Att: Norma Alice F.H. Jardim (adv. e prof).
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