CONSTITUIÇÃO ESCRITA E CONSTITUIÇÃO REAL.

 

O jurista, filósofo, teórico social-democrata, escritor e político alemão Ferdinand Johann Gottlieb Lassalle (1825-1864) se notabilizou por conceituar o que seja Constituição e por explicitar a distinção entre o discurso jurídico-constitucional e a realidade social.

Ferdinand Lassalle conclui que uma Constituição escrita é boa e duradoura quando corresponde à Constituição real e tem suas raízes nos fatores do poder que regem o país. Caso contrário, a Constituição escrita (a folha de papel) sucumbe, necessariamente, perante a Constituição real.

O autor defende sua tese com um exemplo muito interessante, que merece ser transcrito. Vejamos:

“Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula, produzindo maçãs e não figos.

Igual acontece com as constituições.

De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”. (LASSALLE, 2000, p. 37).

No caso do Brasil, fatos concretos atuais comprovam que a Constituição escrita (a folha de papel) não se equivale à Constituição real. Os problemas constitucionais deixaram de ser problemas de direito e se tornaram problemas de poder. Ou seja, a prevalência do poder, do autoritarismo e da arrogância superam em muito a prevalência do direito. O que está escrito não vale mais, porquanto o desrespeito reiterado das normas tenha maculado de vez o direito. A Constituição escrita (a folha de papel) sucumbiu à Constituição real (poder por poder). E vale a ressalva de que essa incoerência brasileira se deu por atitudes e medidas advindas de membros do Poder Judiciário, que abusam do ativismo judicial e violam as prerrogativas e competências dos demais Poderes da República.  

“Nos casos extremos e desesperados, também o povo, nós todos, somos uma parte integrante da constituição” (LASSALLE, 2001, p.17). Ou seja, em uma democracia em que a população tem voz ativa para participar das votações constitucionais, como era o forte desejo de Lassalle, o povo se torna um fator real do poder. Mas no caso do Brasil, atualmente, o poder do povo é efêmero e o poder da Constituição deixou de ser como está escrito, e vale a força do poder de certas autoridades, que se intitulam portadoras da razão, que rompem com o devido processo legal e que violam as leis e as garantias constitucionais.     

Segundo Lassalle, podemos dizer que uma Constituição escrita é boa e eficiente somente quando essa constituição escrita corresponder à Constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país. Mas isso acontece hoje no Brasil? Não, claro que não! Hoje, no Brasil, impera a lei da ameaça e do autoritarismo do Estado, com a reiterada quebra de protocolos e óbices aos direitos e garantias dos cidadãos. A censura é a bola da vez, usada contra as pessoas que são obrigadas ao silêncio e à humilhação. A liberdade de expressão deixou de existir, restando apenas seu registro no papel, mas sem a eficácia constitucional. A Constituição escrita (a do papel) não reflete a Constituição real vivida pelo país.

A Constituição jurídica brasileira está em desacordo com a Constituição real e efetiva e, portanto, não tem mais nenhum valor. A sociedade brasileira não se vê mais amparada pelo que está escrito na sua Constituição, pois o que vale nos dias atuais é a obstinação pelo poder de autoridades sem voto, mas protegidas pela toga da Suprema Corte. No entanto, a pretendida ditadura da toga enfrenta dificuldades, uma vez que o povo não aceita o cabresto e se irresigna. E como previa Lassalle, “a força de um povo não deve ser subestimada, porquanto esse povo pode se levantar contra o poder organizado, opondo-lhe sua formidável supremacia, embora desorganizada”. 

A Revista Oeste e o Jornal Gazeta do Povo, em março de 2022, publicou uma matéria que diz o seguinte:

“Ministro do Supremo Tribunal Federal assina decisões que desrespeitam de maneira direta a legislação e a Constituição. O STF brasileiro é um caso único em qualquer país do mundo que pretenda ter uma Corte Superior de Justiça encarregada de dar, sempre e de forma coerente, a última palavra a respeito da lei. No Brasil, a Corte Suprema nunca tem a mesma palavra sobre nada; vai mudando conforme as circunstâncias e os interesses pessoais dos seus onze ministros, a maioria dos quais, hoje, servem como advogados militantes da esquerda e da oposição política ao governo. Para piorar essa calamidade, o ministro Alexandre de Moraes, hoje o mais agitado de todos eles, tornou-se uma espécie declarada de “fora da lei” jurídico: sistematicamente, e agindo de caso pensado, ele assina decisões que desrespeitam de maneira direta a legislação e a Constituição. Se fosse um juiz de Direito de uma vara qualquer da Justiça, suas sentenças não passariam pelo primeiro filtro - seriam todas reformadas já no escalão imediatamente superior a ele. Mas aí é que está: Moraes, como todos os seus colegas, não tem ninguém, absolutamente ninguém, acima de si. Se ele decidir, amanhã ou depois, que o triângulo tem quatro lados vamos ter um problema: o Brasil será, em todo o mundo, o único país com o triângulo quadrado, pois nenhum dos seus dez colegas fará a mínima objeção a seu despacho, como não fez até hoje para nenhum dos absurdos que o ministro pratica de forma serial. O Senado, que pela lei deveria proteger a sociedade de ministros como Moraes, se acovarda e foge das suas responsabilidades; seu presidente, há anos, se colocou de quatro diante do STF. Para resumir essa ópera em uma frase: ele jogou no lixo, simplesmente, uma petição popular com 1,7 milhão de assinaturas solicitando o julgamento de Moraes pelo Senado. O ministro, como é do conhecimento de todo o mundo político brasileiro, chefia há três anos um inquérito grosseiramente ilegal para, segundo ele, reprimir “fake news” (ele fala assim mesmo, em inglês; recusa-se a fazer a tradução para “notícias falsas”) e “atos antidemocráticos”. Se é ilegal, por que continua? Porque o resto do STF é cúmplice integral da ilegalidade. A maior parte da mídia é plenamente a favor. A Câmara e o Senado não dizem um pio. Aí, é claro, Moraes deita e rola. Seu último surto de agressão à lei foi particularmente primitivo. O ministro está empenhado, desde o início do seu inquérito perpétuo, a cassar a palavra do presidente da República e dos seus aliados na campanha eleitoral de 2022. No vai e vem que bloqueou e depois desbloqueou a plataforma de comunicação social Telegram, usada pelo presidente, Moraes viveu uma história de superação. Invocou, como base legal para sua ação de censura, “o artigo 12” do Marco Legal da Internet. Poderia ter invocado a Lei de Falências, ou o Tratado de Versalhes: o artigo 12 não tem absolutamente nada a ver com “fake news” ou qualquer outra desculpa que o ministro utiliza para perseguir os seus adversários políticos. Apenas prevê sanções para quem praticar, basicamente, atos de violação de privacidade descritos nos artigos imediatamente anteriores — e, pior ainda, não prevê a punição que Moraes adotou para o Telegram. A cereja no bolo é um trecho do despacho condenatório em que o ministro cita como prova de suas acusações trechos de uma reportagem do “Fantástico”. É coisa de centro acadêmico de faculdade de Direito do interior. Foi um desastre. Moraes piora com o tempo”.

Depois dessa matéria a Constituição da República Federativa do Brasil continuou sendo desrespeitada, sistematicamente, dia após dia, e justamente por quem deveria protegê-la e guardá-la – o Supremo Tribunal Federal. Pergunta-se: os guardiões da Constituição estão agindo de forma reta ou torta, e eles estão certos ou errados??  

Empresários, jornalistas, blogueiros, políticos, caminhoneiros e cidadãos de maneira geral sofreram punições por parte do Judiciário brasileiro (STF e TSE), sem o devido processo legal e sem que os advogados das partes interessadas tivessem acesso aos autos. Muitos outros casos de desmonetização de canais e proibição de comentaristas em televisão e em redes sociais pipocaram nos últimos tempos. A censura, a ameaça e a punição foram seguidas de pesadas multas. Os punidos sofreram as consequências sem o direito à ampla defesa e ao contraditório. Ou seja, a Constituição da República - a Carta Magna -, continua sua trágica jornada de violação e desrespeito por parte de membros do próprio Poder Judiciário, que, ao contrário disso, deveriam proteger, guardar e fazer cumprir a Lei Máxima do país.

Ao meu sentir, após tantas considerações, comparações e verdades, a Constituição Federal do Brasil precisa ser reescrita, reformulada, renomeada e reiteradamente respeitada. Não há como conviver com uma Constituição escrita (folha de papel), que sucumbe todo o tempo diante de uma Constituição real (de poder e autoritarismo) imposta goela abaixo da cidadania. A democracia, a liberdade e o Estado democrático de direito não podem ser conciliados se não houver a prevalência da Constituição cidadã.

E arremato este artigo citando Miguel Reale, eminente jurista e professor: Ora, aos olhos do homem comum o Direito é lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros. Assim sendo, quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; quem não o faz, age torto”.

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021).

Clique aqui e continue lendo sobre temas do Direito e da Justiça, além de outros temas relativos a cidadania, política, meio ambiente e garantias sociais.

 

 

 

 

  

Comentários

  1. Sensacional o artigo. Excelente do inicio ao fim. Li e reli e aprendi muito porque a Constituição brasileira está em frangalhos ultimamente e ninguém da justiça respeita mais. O exemplo partiu da cúpula do judiciário que deveria proteger e fazer cumprir como bem disse o mestre adv dr Wilson Campos. Muito bom o texto e recomendo e compartilho com colegas da advocacia e da academia. Abrs. Efraim M. Divino S. F.

    ResponderExcluir
  2. Dr. Wilson o senhor está cada dia melhor nos artigos de interesse de todos nós e da sociedade brasileira como um todo. Artigos corretos, equilibrados e dentro da lei e da ordem jurídica. Excelente mesmo. Parabéns!!! Att: Lucy Ramos.

    ResponderExcluir
  3. Vinicius J. S. Júnior13 de janeiro de 2023 às 23:07

    Eu como todos os brasileiros estamos muito preocupados como isso vai terminar porque coisa boa não vai ser. O Brasil está dividido e cada dia mais nervoso e mais difícil de satisfazer a ou b. O artigo mostra como a nossa Constituição está torta e cheia de vícios. Cadê o Congresso, cadê os legisladores???? Brasil, acorda pelo amor de DEUS!!! Dr. Wilson nota 1.000 pelo artigo como sempre patriota e correto juridicamente. Direito e Justiça já!!!! At: Vinicius Salles.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas