O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR.

 

O apelo social do tema se deve ao princípio fundamental previsto no artigo 3º, inciso III, da Constituição da República, que leciona no sentido do objetivo de se erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 

Em assim sendo, o Senado aprovou no dia 9 de junho deste ano um projeto de lei que cria o marco regulatório do superendividamento (PL 1.805/2021). Mas a qual superendividamento se refere a medida? Por certo que se refere àquele da impossibilidade de o consumidor de boa-fé pagar as suas dívidas de consumo sem comprometer sua subsistência. Ora, há que se privilegiar a boa-fé do caso concreto. 

O projeto elenca os direitos do consumidor e os deveres do fornecedor em uma relação comercial que envolva condições de crédito. Também traz regras sobre empréstimo consignado e repactuação de dívidas. O texto segue para sanção presidencial.

No entendimento dos setores mais ligados à defesa dos consumidores, o que se vê é uma significativa vitória, haja vista a intenção de melhorar o Código de Defesa do Consumidor (CDC). A comemoração é mais em razão da expectativa do início de práticas mais justas na concessão do crédito e do respectivo respeito a uma considerável parcela da população brasileira, tão sufocada por intermináveis endividamentos. 

Estima-se que o país tenha mais de 60 milhões de pessoas endividadas, sendo que 30 milhões delas estão superendividadas, ou seja, não estão conseguindo pagar suas dívidas. 

O problema atinge homens e mulheres. Daí que, para ajudar na recuperação econômica dessas pessoas (a maioria, mulheres que chefiam mais de 45% dos lares brasileiros), o projeto de lei originado no Senado propõe a regulação da concessão de crédito com aumento da transparência e prevenção do endividamento com regras para a publicidade, e garante melhores condições e procedimentos para negociação da dívida com as instituições financeiras.

A intenção do texto é também possibilitar instrumentos para conter o abuso praticado contra idosos e vulneráveis, que podem ser movidos a escolhas de crédito desfavoráveis a sua realidade, e se verem em permanente exposição para o uso de crédito fácil, mas sem condições de sair do indesejado círculo vicioso. 

Todavia, o projeto não prevê apenas ajuda para as famílias endividadas, que encontrarão uma saída legal para essa terrível situação, pois, lado outro, também colabora com a economia, que voltará a ter milhões de brasileiros em condições de retornar ao tentador mercado de consumo.

Como dito antes, o projeto segue para sanção do Presidente da República, valendo evidenciar ainda que o foco é tentar a educação financeira do consumidor, na transparência dos contratos e na negociação com os credores. Serão proibidas práticas como anunciar oferta de crédito com “taxa zero” ou “sem juros”. A proposta também prevê a entrega obrigatória ao consumidor de cópia do contrato, constando informações claras sobre os riscos, taxas de juros e custo efetivo da operação. 

A coisa toda é tão emblemática, ou o Congresso é tão lento, que o texto original da proposta é de 2012 (PLS 283/2012), que propôs alterações no CDC, com a colaboração de uma comissão de juristas, e chega para sanção depois de tramitar por quase 10 anos. Mas o importante é que está aí e veio para ser um instrumento de defesa das boas relações entre consumidores e fornecedores, proibindo práticas consideradas enganosas e prevendo audiências de negociação de dívidas. Na decisão foram 73 votos a favor e nenhum contra. A matéria vai agora, finalmente, à sanção presidencial. 

A questão do superendividamento ganhou contornos dramáticos em face dos efeitos econômicos adversos trazidos pela pandemia da Covid-19, uma vez que, lamentavelmente, muitas pessoas perderam emprego e renda e ainda ficaram reféns do pânico diante da doença invisível. 

Para além do já declinado, o superendividamento é, de fato, um problema social, que envolve pessoas diversas e suas respectivas famílias. Para tal dimensão, o texto aprovado busca reforçar as medidas de informação e prevenção do superendividamento, introduz a cultura da concessão responsável de crédito e amplia a conscientização quanto ao pagamento das dívidas, como estímulos à renegociação e à organização de planos de pagamentos pelos consumidores. 

As medidas propostas visam restaurar a paz e a dignidade de muitas famílias que experimentam hoje dificuldades para renegociar dívidas e preservar renda suficiente para garantir seu mínimo existencial. Espera-se que possa trazer impactos positivos para a economia, pois a reinserção dessas pessoas no mercado de consumo pode ajudar o processo de recuperação econômica. 

Vale observar que, entre outras medidas, o texto que altera o CDC (Lei 8.078/1990) e o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), permite ao cliente desistir de contratar empréstimo consignado dentro de sete dias do contrato sem indicar o motivo. Para isso, o fornecedor da proposta deve dar acesso fácil a formulário específico, em meio físico ou eletrônico, no qual constarão os dados de identificação e a forma de devolução de quantias recebidas e eventuais juros. Mas, atenção! - as regras do projeto não se aplicam a dívidas relacionadas a bens de luxo, de alto valor.

Vejamos, agora, algumas situações:

Desconto em consignado:

Em relação ao máximo que pode ser descontado do salário líquido, o texto aprovado mantém os níveis atuais da margem consignável (o total que pode ser usado para pagar as parcelas). São 5% do salário líquido para pagar dívidas com cartão de crédito e 30% para outros empréstimos consignados. A novidade quanto ao limite do consignado para o cartão é que ele poderá ser usado ainda para saques nessa modalidade. 

Se as regras forem descumpridas, na revisão do contrato junto ao Poder Judiciário, o juízo poderá determinar o aumento do prazo de pagamento sem acréscimo, a redução de encargos ou a substituição de garantias para adequá-lo às novas regras. Adicionalmente, o limite do consignado poderá aumentar se, após repactuação aprovada pelo Judiciário, isso implicar redução do custo efetivo total, que é o total de juros e taxas relacionadas ao empréstimo.

Ofertas enganosas:

Segundo o texto aprovado, será proibido fazer oferta de crédito ao consumidor, seja em propagandas ou não, com expressões enganosas, como “sem juros”, “gratuito”, “sem acréscimo”, “taxa zero” ou expressões semelhantes. Nessas ofertas de crédito, será proibido ainda dizer que a operação poderá ser concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do interessado, principalmente para grupos mais vulneráveis, como idosos, analfabetos, doentes ou se a oferta envolver prêmios.

Será proibido assediar ou pressionar o consumidor para contratar crédito ou comprar produto ou serviço. Os credores não poderão condicionar o início de negociações sobre dívidas à desistência de ações na Justiça, ao pagamento de honorários advocatícios ou a depósitos judiciais. 

Renegociação: 

A pedido do consumidor superendividado, o juízo competente poderá intimar e despachar em processo de repactuação das dívidas com a presença de todos os credores. Na audiência, o consumidor poderá apresentar plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos para quitação, preservadas as garantias originais.

A novidade nesse tipo de procedimento é a observância do conceito de “mínimo existencial”. Um regulamento da lei deverá definir a quantia mínima da renda do devedor que não poderá ser usada para pagar as dívidas, com a intenção de impedir que a pessoa tenha de contrair novas dívidas para pagar despesas mínimas como água e luz ou mesmo pagar as dívidas antigas.

Credores que faltarem às audiências de conciliação sem justificativa terão suas dívidas suspensas, assim como os juros por atraso. Além disso, ficarão sujeitos compulsoriamente ao plano de pagamento se o consumidor souber o valor exato devido. E esse credor ausente não será priorizado na hora de receber o dinheiro de volta. 

Foi também detalhada a participação, de forma concorrente e facultativa, dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor na fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas. 

O pedido de repactuação feito pelo consumidor não importará em declaração de insolvência civil e poderá ser repetido somente após decorrido o prazo de 2 anos, contado da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado. 

Segundo o texto, não poderão fazer parte dessa negociação as dívidas com garantia real (como um carro), os financiamentos imobiliários, os contratos de crédito rural e dívidas feitas sem a intenção de realizar o pagamento.

Se sair acordo com algum credor, o juízo validará o acordado, que poderá ser exigido no Cartório de Protestos (eficácia de título executivo). Deverão constar do plano, itens como: aumento do prazo de pagamento e redução de encargos; suspensão de ações judiciais em andamento; data a partir da qual o nome sairá do cadastro negativo; e vinculação do plano de pagamento a condutas do consumidor que evitem o aumento da dívida.

Plano compulsório: 

Para os credores com os quais não houve acordo ou para os que não compareceram à primeira negociação, o texto prevê, a pedido do consumidor, que o juízo forneça um plano judicial compulsório de pagamento. Os credores serão convocados, e um administrador nomeado pelo juízo terá 30 dias para apresentar um plano de pagamento com aumento de prazo e descontos. 

Será assegurado aos credores, no mínimo, o pagamento da dívida original corrigida pela inflação do período e cinco anos para quitação total da dívida após o fim do prazo do plano proposto pelo devedor. A primeira parcela desse resíduo deverá ser paga em 180 dias a partir da decisão judicial, e o restante em parcelas mensais e sucessivas. 

Procon:

Antes de ir à Justiça pedindo um plano de pagamento por acordo com os credores, o consumidor terá acesso a uma fase de conciliação com os órgãos de defesa do consumidor, como os Procons. Entretanto, esse tipo de atendimento especial será facultativo por parte desses órgãos.

Da mesma maneira, as conversas terão de ser com todos os credores e deve ser preservado o “mínimo existencial” do salário do devedor. 

Nesse acordo, o consumidor também deve se comprometer a não fazer novas dívidas e adotar medidas para evitar o agravamento de sua situação de superendividado. O acordo deverá incluir a data em que o nome será excluído do cadastro de mau pagador. 

Custo total: 

Tanto os bancos e financiadoras quanto aqueles que venderem a prazo deverão informar o consumidor previamente e de forma adequada qual é o custo efetivo total, a taxa mensal real de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito do consumidor de antecipar o pagamento da dívida ou o parcelamento sem novos encargos.

As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento. 

Conforme a gravidade da conduta de não fornecer as informações de forma clara ao consumidor, o texto prevê, judicialmente, a redução de juros e o aumento do prazo de pagamento, levando-se em conta a capacidade de pagamento do consumidor, sem prejuízo de ações por danos morais. 

Alteração rejeitada:

O relator do projeto retirou o dispositivo acrescentado na Câmara que permitia ao credor a remessa de títulos ou documentos de dívida ao tabelionato de protesto, com a recomendação de prévia solução negocial. Isso seria feito a partir, exclusivamente, de comunicação ao devedor mediante correspondência simples, correio eletrônico, aplicativo de mensagem instantânea ou meios similares. 

Essa situação mereceu reservas, porque mesmo na hipótese de uma solução negocial o devedor precisaria arcar com as despesas de emolumentos, agravando assim a sua situação financeira. 

Alterações mantidas pelo Senado: 

Todas as outras alterações propostas no substitutivo da Câmara foram mantidas pelo Senado. Uma delas foi a supressão de mudança sobre a vedação de publicidade abusiva a criança. A Câmara entendeu que a questão seria melhor regulada pelas normas sobre publicidade e proteção à criança e ao adolescente. Isso, considerando que o objetivo principal do projeto é prevenir e tratar o superendividamento, razão pela qual essa questão não foi debatida na mesma medida que as outras.

Entendo, particularmente, na condição de advogado, que o projeto de lei e suas implícitas medidas inibirão condutas abusivas contra os devedores de boa-fé, favorecendo os fornecedores que dão valor às boas práticas do crédito responsável, tirando da inércia o poder de fiscalização dos órgãos públicos e, quiçá, diminuindo a sobrecarga de trabalho do Judiciário. 

De sorte que o PL 1.805/2021 é bem-vindo para fortalecer os direitos fundamentais, tão necessitados dos princípios da prevenção e da precaução. A advocacia está aí para auxiliar na defesa do cidadão e na valorização dos direitos e garantias, que serão impulsionados por meio da boa, justa, equilibrada e democrática conciliação, ou judicialização, se desrespeitadas as novas medidas legais depois de sancionadas.

Fonte: Agência Senado. 

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas tributária, cível, trabalhista, empresarial e ambiental/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB-MG/Delegado de Prerrogativas da OAB-MG).  

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Comentários

  1. Boa lei para defender os idosos e mais indefesos que precisam de banco que explora e abusa dos juros sobre juros.
    Muito bom o artigo e bem explicado pelo doutor Wilson. O Brasil vai melhorando aos poucos . At. Virgílio Madruga.

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  2. Eu que passei por um caso de dívida acumulada com cartão e empréstimo conseguinado sofri pra pagar. A lei aí vai ajudar bastante na hora de comprar ou negociar mas o melhor mesmo é fugir da dívida. Meu Jesus. Mas Dr Wilson valeu muito pela informação que eu gosto muito de ler seus artigos no horário de intervalo no serviço ou em casa. Obrigado por.
    Abrs. Joaquim D.

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  3. Li o texto e acho boa a lei e se ela não funcionar a gente chama o advogado. Certo Dr Wilson Campos? Vamos remando e melhorando nosso Brasil. Salve salve vamos juntos. Do leitor Gegê Pacheco.

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