SENTENÇA INUSITADA



Dando um "migué" no juiz. 

A sentença reproduzida abaixo, aos moldes de outras decisões bem humoradas, acaba por atenuar o clima tenso do dia a dia dos magistrados e dos advogados.

Antes da leitura dos fatos e do julgamento monocrático, cabe aliviar o peso do desabafo do juiz, uma vez que o ser humano está sujeito a arroubos severos e amenos, dependendo do dia, do local, da situação e do clima. O calor, o sol forte e a vestimenta talar podem causar mudanças de humores.

Na defesa dos advogados resta a afirmação de que a "estória" que lhes é contada pelo cliente é retransmitida, na narrativa dos fatos, sob pena desse cliente não ficar satisfeito e não se ver representado com justiça, embora o causídico sempre alerte para a decadência, para a prescrição, para o excesso dos pedidos e para a importância da boa-fé processual.

No caso concreto, que ora se apresenta, segundo o informativo jurídico Migalhas: "O cenário descrito pela caneta do juiz foi o pano de fundo que tinha em mente o magistrado, ao reconhecer a decadência e extinguir uma ação. O autor – que, nas palavras no douto julgador, tentou dar o maior "migué" em S. Exa. – pedia a "rescisão do contrato" de compra e venda dois anos e meio após o uso do produto".

Relata o juiz: "Confesso que fiquei triste com este processo, com o autor, com os advogados, com o Judiciário, com o Sistema e comigo mesmo. Numa sexta-feira à tarde, 16 horas, Janeiro, sol forte lá fora, pergunto se mereço realmente estar 'julgando' este processo. Acho que não". 

Veja-se a sentença inusitada: 

"Vistos, etc. Li a inicial e não me ative à data da compra. Li a contestação e então percebi que o aparelho fora comprado em novembro de 2012. Verifiquei na última página da inicial e vi que a ação fora ajuizada em 18 de agosto de 2015. Confesso que fiquei curioso com a resposta a ser dada pelo autor na impugnação a contestação quanto a aplicação do art. 26, II, do CDC. Ao ler a peça, no item 15 (fl. 101) o autor tentou dar o primeiro "migué" neste Juiz, ao alegar que inúmeras vezes tentou amigavelmente resolver o problema. Mas, onde está a prova? Ou onde isso foi alegado na inicial? No item seguinte, 16, consta que o autor simplesmente não tem mais interesse na manutenção do produto (isso 02 anos e meio após o uso) e quer a "rescisão do contrato". Confesso que fiquei triste com este processo, com o autor, com os advogados, com o Judiciário, com o Sistema e comigo mesmo. Numa sexta-feira à tarde, 16 horas, Janeiro, sol forte lá fora, pergunto se mereço realmente estar "julgando" este processo. Acho que não. Reconheço a decadência e extingo a ação. P. R. I. Florianópolis, 15 de janeiro de 2016. Processo: 0321861-32.2015.8.24.0023. Vilson Fontana. Juiz de Direito. DOCUMENTO ASSINADO DIGITALMENTE. Lei n. 11.419/2006, art. 1º, § 2º, III". 

Migalhas descreve ainda que: "De acordo com a decisão, a compra foi realizada em novembro de 2012 e a ação ajuizada em agosto de 2015. O julgador revelou sua curiosidade com a resposta a ser dada pelo autor na impugnação à contestação quanto à aplicação do art. 26, II, do CDC ("O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis"). Segundo o magistrado, o autor tentou dar o primeiro "migué" ao alegar que inúmeras vezes tentou amigavelmente resolver o problema. "Mas, onde está a prova? Ou onde isso foi alegado na inicial ?". 

A nosso ver, se bem entendida a sentença judicial acima, a insatisfação do juiz e o desalento dos advogados vão no mesmo sentido. Os jurisdicionados, mesmo quando sem direito ao direito, pedem por direito e justiça, sem levar em conta que as leis são rígidas e serão interpretadas com rigor. O difícil é convencer o cliente que o seu direito não prospera e que o êxito está comprometido. O cliente, quase sempre, não aceitando um NÃO como resposta, vai bater em outra porta e taxar o advogado disso e daquilo. Contudo, independentemente de ficar ou não contrariado nas suas vontades, o cliente precisa ser esclarecido sobre o que pode e o que não pode ser levado às barras do Poder Judiciário.

Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG).

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