MERO ABORRECIMENTO TEM VALOR.



 
Tornou-se absurdamente comum nas decisões judiciais que julgam pedidos de indenização por danos extrapatrimoniais em ação de direito do consumidor, o entendimento do Juízo de que o dano ou prejuízo suportado não passou de “mero aborrecimento” ou “dissabor cotidiano” e que a procedência do pedido fomentaria a indústria do dano moral.

 A decisão do MM. Juízo leva o cidadão a pensar que não vale a pena reclamar por um direito, que comprar um produto com vício ou defeito é normal, que buscar a responsabilização do fabricante é perda de tempo, ou que arcar com aborrecimentos e dissabores não tem valia.

A sentença do magistrado, no tocante ao tema do presente debate, não se resume apenas ao fato de que o Estado não quer o crescimento da judicialização, mas também ao fato de que o Poder Judiciário está lavando as mãos quanto aos seus aborrecimentos e dissabores, esquecendo-se que você ingressou em juízo, aguardou longos meses ou anos para solucionar o imbróglio e, ainda, despendeu dinheiro com advogado e custas processuais, dependendo do caso. Ora, de fato, trata-se de simples e mero aborrecimento? E a perda de tempo útil e consequentes prejuízos e danos suportados pelo consumidor? 

Esses julgamentos e decisões destacados nos processos como “mero aborrecimento” ou “dissabor cotidiano” não conseguem convencer o jurisdicionado e talvez nem mesmo o magistrado, que se perde em fundamentação subjetiva do instituto e sem completude nos argumentos, exatamente quando enfrentados os quesitos do tempo e da paciência do consumidor, as idas e vindas à procura de uma solução para o problema, e o descaso do fornecedor do produto ou do serviço. Ou nada disso importa? Ou será que a empresa requerida deve continuar agindo como age, porque é mais lucrativo para ela?

Por essas e outras é que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) relançou no dia 4 de setembro passado a campanha nacional “Mero Aborrecimento Tem Valor”, cuja iniciativa tem como objetivo mostrar o impacto social e profissional que o entendimento jurídico do “mero aborrecimento” causa nas pessoas.

A campanha é para efetivamente demonstrar à comunidade os impactos que o chamado “mero aborrecimento” causa na sociedade e na classe dos advogados, principalmente a jovem advocacia. Também conscientizar sobre a importância do direito dos consumidores como uma forma de saneamento coletivo, colaborando na construção de uma sociedade mais solidária e fraterna.

Mesmo antes do reforço da campanha, diversas medidas foram tomadas pelas Seccionais, como palestras e reuniões com membros do Poder Judiciário, de forma que fosse entendida a importância não apenas para o jurisdicionado, mas também para a advocacia e a magistratura.

A campanha “Mero Aborrecimento Tem Valor” surgiu da irresignação dos advogados quanto ao entendimento que contraria os valores do Estado democrático de direito. O sentimento é de que “mero aborrecimento” não é excludente de responsabilidade civil e enseja danos coletivos e sociais. Não é o entendimento jurisprudencial que deve ser combatido, mas a arbitrariedade. Quando a Justiça sai dos trilhos, a advocacia tem que mostrar o caminho novamente.

A campanha busca conscientizar o Poder Judiciário de que o dano moral não pode ser banalizado em “mero aborrecimento”. Cada dia mais o jurisdicionado fica frustrado com as decisões dos magistrados. Essa postura do Judiciário só beneficia as empresas e os prestadores de serviços, que em vez de melhorarem o atendimento ao consumidor, encontram respaldo nas decisões judiciais, verdadeiras motivações para continuar infringindo o Código de Defesa do Consumidor e desrespeitando o cidadão. Essa situação precisa mudar.

Vale observar que as decisões judiciais, da forma como vêm ocorrendo, acabam por estimular e não desestimular a conduta, servindo o processo como mecanismo legitimador do enriquecimento ilícito das empresas. Apesar do elevado número de processos, os maiores litigantes são as empresas que obtêm os maiores lucros. Exemplos das empresas mais acionadas nos Juizados Especiais Cíveis (JECS), segundo dados do BACEN (2015) e portais judiciários: a Oi teve lucro líquido de R$ 1,49 bilhão em 2013 (1ª mais acionada nos JECS nos últimos 5 anos); a Light S/A de R$ 662,8 milhões em 2014 (3ª); a Ampla Energia e Serviços de R$ 515 milhões em 2013 (7ª); o Banco Itaú de R$ 23,35 bilhões em 2015 (5ª); o Banco Santander de R$ 6,62 bilhões em 2015 (4ª); o Banco Bradesco de R$ 17,2 bilhões em 2015 (6ª); a Caixa Econômica Federal de R$ 7,2 bilhões em 2015; a Vivo de R$ 3,4 bilhões em 2015 (12ª); e a Tim de R$ 1,73 bilhão em 2015 (13ª).

Como visto, as campeãs em reclamações nos JECS são também campeãs em lucros. Resultado: o fornecedor não punido preferirá repetir a conduta ofensiva ao ordenamento jurídico e, assim, ensejará a propositura de mais processos, exatamente porque, ao deixar de observar o caráter sancionatório da indenização, a Justiça não promove a correção das distorções praticadas no mercado, além de colaborar para que os fornecedores mesmo demandados em juízo não sejam exemplarmente punidos.

A rigor, enquanto os fornecedores de produtos e serviços não forem severamente punidos pelos seus atos contrários à dignidade do consumidor (o maior prejudicado), obrigando-os a melhorar a qualidade do produto ou do serviço prestado, o número de reclamações e de processos judiciais não serão reduzidos.

Em suma, faz-se necessário o devido respeito do fornecedor em relação ao consumidor. Ainda que o empresário sofra com a pesada carga tributária, isso não lhe dá o direito de aviltar direitos e garantias do cliente, do consumidor, do cidadão. E da mesma forma, ou nessa mesma linha de raciocínio, isso não dá ao Judiciário o direito de se omitir em seu papel relevante neste cenário, seja perante o Estado de direito, o consumidor individual ou diante da justa demanda coletiva da sociedade.  

Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG).

Comentários

  1. Com certeza e como tem valor o aborrecimento. Só juízes cegos não veem isso. Excelente o seu artigo Dr. Wilson Campos, e como sempre uma pérola de texto, educativo, acadêmico.Vicente S.Camarro.

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