O PRINCÍPIO DA FICHA LIMPA.





A Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, também chamada “Lei da Ficha Limpa”, é um exemplo de lei infraconstitucional que regulamenta restrições à elegibilidade. Segundo registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), esta lei foi fruto de um projeto de lei de iniciativa popular, encabeçado por entidades que fazem parte do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), e mobilizou vários setores da sociedade brasileira, entre eles, a Associação Brasileira de Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais (Abramppe), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), organizações não governamentais, sindicatos, associações e confederações de diversas categorias profissionais, além da Igreja católica. Foram obtidas mais de 1 milhão e 600 mil assinaturas em apoio.

A rigor, o objeto da LC 135/2010 foi alterar a Lei Complementar 64/1990, atendendo ao disposto no art. 14, § 9º, da Constituição Federal, que autoriza o legislador infraconstitucional a estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, visando proteger a probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato.

Em síntese, as principais inovações trazidas pela LC 135/2010, são:

1. Aumento no rol dos crimes elencados no art. 1º, I, e;

2. No que se refere à rejeição das contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas, a exigência de que a ação do agente seja dolosa, bem como a necessidade de anulação ou suspensão da decisão pelo Poder Judiciário, e não apenas do ajuizamento da ação judicial;

3. Inclusão da imposição da inelegibilidade para os que forem condenados por captação ilícita de sufrágio;

4. Previsão da inelegibilidade para os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em virtude de infração ético-profissional, dos que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial e para os magistrados e membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente;

5. Aplicação da inelegibilidade aos condenados por terem simulado a cessação do vínculo conjugal ou da união estável, para evitar a inelegibilidade em razão de parentesco;

6. Exclusão da incidência da lei que estabelece casos de inelegibilidade sobre os crimes culposos, os de menor potencial ofensivo, os de ação penal privada e a renúncia para fins de desincompatibilização;

7. Abolição da exigência do trânsito em julgado da decisão judicial para fins de inelegibilidade, bastando a existência de decisão proferida por órgão judicial colegiado a partir da edição da nova lei;

8. Estabelecimento da prioridade na tramitação dos processos que versarem sobre desvio ou sobre abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, vedada a alegação de acúmulo de serviço;

9. Possibilidade de suspensão cautelar da inelegibilidade por decisão emanada do órgão colegiado competente;

10. Aumento do prazo das inelegibilidades para oito anos.

O Supremo Tribunal Federal (STF) deliberou sobre a lei e inclinou pela constitucionalidade da norma, mas ainda há na ordem jurídica atual muita controvérsia acerca de sua constitucionalidade.

Por um lado, existe uma corrente doutrinária que, apoiada no princípio da presunção de inocência, sustenta a inconstitucionalidade da LC 135/2010, porque considera que a inelegibilidade assume caráter sancionatório e que a ausência de previsão do trânsito em julgado da decisão constitui uma violação a direitos fundamentais.

Por outro lado, há outra corrente que defende a constitucionalidade do novo diploma legal. Asseveram estes que a Lei da Ficha Limpa visa impedir o acesso a cargos políticos de candidatos detentores de “ficha suja”, mas ainda não condenados definitivamente. Alegam, ainda, a ocorrência da impunidade, decorrente da demora no julgamento definitivo do processo e consideram que a aplicação do princípio da presunção de inocência restringe-se à seara penal e que os valores tutelados pelos princípios da moralidade e probidade administrativa seriam mais amplos do que a garantia da presunção de inocência, uma vez que resguardam toda a coletividade e, por esse motivo, teriam maior relevância no caso em tela.

Dessa forma, apesar de considerada a importância da garantia da presunção de inocência e que essa é uma conquista que não pode ser habitualmente flexibilizada, deve-se seguir o entendimento da Suprema Corte brasileira, que decidiu pela constitucionalidade da LC 135/2010. Ademais, a presunção de inocência não é considerada uma garantia absoluta nem mesmo na seara penal, que permite a legitimidade das prisões provisórias.

Explicadas as nuanças da “Lei da Ficha Limpa”, eis que surgem polêmicas relativas à aplicação da norma, porquanto algumas pessoas resolvam, de uma hora para outra, subestimar o rigor da regra geral.

Estão surgindo reações de todos os lados em razão do desmonte gradativo dos esquemas de corrupção em altos escalões, mediante ações das investigações e da Justiça. Isso se deve ao fato de que o país tem longa história de práticas não republicanas em que ricos e poderosos são ou eram tratados com benevolência na aplicação da lei.

Felizmente, essa mentalidade retrógrada e essa cultura deletéria vêm sendo derrotadas por meio da atuação da sociedade civil, da imprensa e das instituições comprometidas com a lisura na gestão.

Neste sentido é o caso da prisão do ex-presidente Lula, encarcerado por corrupção e lavagem de dinheiro. A condenação em segunda instância, conforme jurisprudência do STF, motiva reclamações na própria Corte. Mas não se trata de norma exclusiva, uma vez que o juiz Sérgio Moro, em dois anos, decretou a prisão de 114 condenados em segunda instância, sendo 12 da Lava Jato. Já outro norte neste contexto é a “Lei da Ficha Limpa”, resultado de importante mobilização popular, que fez valer a proposta da inelegibilidade por oito anos dos condenados em segunda instância.

Reside aí a grande preocupação, principalmente quando o ministro Dias Toffoli, do STF, concede liminar ao senador cassado Demóstenes Torres para que ele seja candidato nas eleições deste ano. Temos, então, duas situações: Lula está inelegível por se enquadrar de forma incontestável na “Lei da Ficha Limpa”. Por sua vez, Demóstenes, representante do bicheiro Carlinhos Cachoeira em Brasília e no Congresso, ficou inelegível na cassação.

A grande preocupação é que, de alguma forma, o princípio da Ficha Limpa vai sendo arranhado, o que não é bom para a continuidade da assepsia na política brasileira. Afinal, Demóstenes foi cassado pelos seus pares, que o tornaram inelegível até 2027, não se justificando a ameaça de fissuras na muralha representada pela ética e a moralidade que a sociedade clama e reclama. Qualquer trinca nessa muralha, seja pela resistência de alguns ou complacência de outros, pode resultar em desastre para a normalidade constitucional.

Vale observar que a “Lei da Ficha Limpa” prevê pedido aos tribunais superiores de suspensão da inelegibilidade com liminar para que o político possa ser candidato. Essa situação do Demóstenes, senador cassado, é um caso específico, e, como a lei prevê, a análise é caso a caso. Embora seja rara a concessão de liminar para autorizar a concorrer, por certo que esse caso não é bom para a expectativa da sociedade civil organizada.

Para alguns especialistas, a decisão do Supremo tem um efeito negativo. A “Lei da Ficha Limpa” corre riscos de enfraquecimento, de fissura, de arranhões, o que não é recomendável para o momento atual.

Para evitar insegurança jurídica é importante que o debate seja levado ao plenário do STF, ou seja, para além das decisões de um ministro ou de uma turma, especificamente. Ademais, o placar apertado da votação no caso de Demóstenes, 3 a 2, demonstra o conflito existente no bojo do tema. Mais do que isso, resta ainda o fato de que a inelegibilidade de Demóstenes decorreu de uma cassação, de uma decisão política, que não se modifica, simplesmente, ao talante de uma questão técnica na esfera criminal.

A imprensa nacional dá fartas notícias a respeito do caso de Demóstenes, senador cassado, cuja decisão coloca em situação difícil a aplicação severa do princípio da Ficha Limpa, porquanto já se anteveja tratamento diferenciado, ao contrário do que espera a nação brasileira, que exige moralidade, legalidade, probidade e isonomia.

Vejamos alguns destaques da mídia:

“A Lei da Ficha Limpa ampliou as hipóteses de inelegibilidade que existiam até então, sendo a principal inovação deixar de fora do pleito políticos que forem condenados por decisão colegiada. Ironicamente, Demóstenes foi um dos relatores da lei em 2010 e afirmou que ela era importante para tratar com rigor "políticos indecentes, malandros e corruptos". Ele acabou sendo cassado pelo Senado dois anos por quebra de decoro parlamentar pela suspeita de ter utilizado o mandato para auxiliar nos negócios do contraventor, Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Gravações que sustentaram a prisão de Cachoeira e processos judiciais contra Demóstenes foram consideradas provas nulas pelo Supremo. Com base nisso, a defesa argumentou que a cassação no Senado deveria ser anulada também e que a inelegibilidade deveria ser afastada. O ministro Dias Toffoli concedeu em março uma liminar nessa direção para permitir a candidatura de Demóstenes. E a Segunda Turma do STF referendou o posicionamento na terça-feira. Analistas observam que a razão técnica pode fazer sentido no mundo jurídico, mas não se apaga na cabeça do eleitor tão facilmente a história de um senador defensor da ética e da moral que agia na surdina a serviço do bicheiro Carlos Cachoeira”.

A Lei da Ficha Limpa não tem como alcançar 100% das ilicitudes, mas ela provocou um debate sobre vida pregressa do candidato. E com certeza será analisado pelo eleitor e dificilmente um candidato com esse histórico terá sucesso. O eleitor há de analisar a situação e os adversários utilizarão essa mancha durante a campanha - afirma Luciano Santos, do MCCE”.

“O eleitor se coloca na posição de juiz nesses casos. Então, o eleitor tem poder para condenar ou absolver o candidato que estiver apto nas urnas. Ainda que o Supremo tenha anulado provas e afastado a inelegibilidade, cabe ao eleitor analisar os fatos e fazer seu julgamento individual no dia de votar - observa Bruno Rangel Avelino, da UnB”.

“A disputa pelo voto, historicamente no Brasil, tem muito mais variáveis do que ser ou não acusado de corrupção. As pessoas tendem a escolher pelas promessas feitas pelo candidato, por afinidade com alguma questão considerada prioritária pelo eleitor ou simplesmente pela identificação ideológica. Portanto, o fracasso ou sucesso nas urnas de políticos implicados em denúncias vai ser definido caso a caso. Com a polarização atual, existem "sérias dúvidas" sobre o reflexo dos escândalos em mudanças nas escolhas na hora de votar, apesar de toda a agenda pública estar voltada para o combate à corrupção. A leitura dos fatos, hoje em dia, depende muito da ideologia. Se alguém de quem se gosta comete um ato de corrupção, é mais fácil achar explicações e minimizar a questão. Se é um político fora das minhas preferências, a acusação ganha outra dimensão - explica o professor Alexandre Araújo Costa, pesquisador na área de política e direito da Universidade de Brasília (UnB).

EX POSITIS, resta a esperança cívica de o eleitor separar o joio do trigo, escolhendo apenas candidatos “ficha limpa” e colocando no ostracismo político os “ficha suja”. Ou seja, no julgamento do eleitor, que está acima das decisões de turmas do STF, o candidato que ferir o princípio da Ficha Limpa estará condenado ao esquecimento e, automaticamente, banido da política representativa brasileira. 


Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB-MG/Especialista em Direito Tributário, Trabalhista e Ambiental).


Comentários

  1. Que uma luz divina desça sobre as cabeças dos brasileiros e faça com que eles somente elejam pessoas honestas e que trabalhem para o povo ao invés de encherem os bolsos de dinheiro. Ficha limpa sim - Ficha suja nunca mais. Gostei do artigo e dou nota 10, porque fala para o povo e pensa no bem do povo. Jasmyn G. S. Vieira.

    ResponderExcluir
  2. Candidato com crimes administrativos a serem apurados, ou vida pregressa comprometida com a sujeira política de sempre, NÃO pode ser elegível, ou seja, é inelegível conforme diz a lei da Ficha Limpa. Tem de cumprir, doa a quem doer. O povo precisa votar certo e não eleger ou reeleger essa cambada de aproveitadores da nação. Chega!!!. Cadeia e exílio político para os desonestos e fichas sujas. Gostei muito do artigo Dr. Wilson Campos, como sempre nota mil nas palavras e na grande defesa do povo mineiro e brasileiro. Parabéns doutor!!! Jacob E. F. Duarte e Samara F. D.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas