DENÚNCIAS E PROCESSOS GENÉRICOS DO “8 DE JANEIRO”.

 

Art. 41, do CPP - A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

 

Como visto, o art. 41, caput, do Código de Processo Penal (CPP), constitui um dos mais importantes dispositivos do nosso ordenamento jurídico. Isso porque se relaciona diretamente aos princípios da ampla defesa e do contraditório que estão previstos no art. 5º, LV, da Constituição Federal, que assim dispõe:

Art. 5º, CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Vale observar que o legislador exige que na denúncia ou na queixa-crime deve constar a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Desde logo, convém observar que a denúncia e a queixa devem ter os mesmos requisitos, não fazendo a lei qualquer distinção neste sentido.

Note-se que a diferença básica se estabelece em nível de legitimidade ativa, cabendo ao Ministério Público oferecer a denúncia em juízo e cabendo à vítima oferecer a queixa-crime em juízo. Mas a petição propriamente dita – a denúncia ou a queixa-crime – deve conter os mesmos requisitos.

Portanto, resta evidente que cabe ao promotor de justiça, na qualidade de representante do Ministério Público, ou cabe à vítima, na qualidade de querelante, expor em detalhes a acusação que é dirigida ao réu ou ao querelado, respectivamente. A necessidade do detalhamento da acusação é óbvia: quanto mais genérica for a acusação, mais difícil é o exercício da ampla defesa e do contraditório.

A rigor, narrativas vagas, sem identificar em detalhes a dinâmica dos fatos, podem, inclusive, inviabilizar completamente a observância dos princípios constitucionais referidos.

Exemplo: se o réu é simplesmente acusado de ter praticado um determinado crime, ele terá dificuldade para se defender se não souber o dia, o local, a vítima e as circunstâncias alegadas pelo promotor de justiça. De outro lado, se constam na acusação tais informações, a defesa pode alegar, por exemplo, que o réu não estava no local dos fatos no momento em que o crime supostamente ocorreu.

Além disso, ainda que a presença do réu na cena do crime seja inquestionável, quanto mais detalhada for a acusação, a defesa melhor poderá ser exercida, seja para comprovar que os fatos não ocorreram conforme a narrativa constante na denúncia, seja para atenuar a resposta penal a ser imposta ao réu.

Atenção! É muito importante observar que se forem imputados ao réu duas ou mais condutas, cada uma delas deve ser especificada. Da mesma maneira, se a acusação for dirigida em face de duas ou mais pessoas, a conduta de cada uma das pessoas deve ser detalhada. Não pode a acusação simplesmente fazer um “pacote acusatório”, uma vez que cada conduta e cada réu devem ser tratados distintamente, com especificação dos detalhes.

Cabe enfatizar que a narrativa circunstanciada do fato criminoso tem natureza de requisito principal ou essencial, de modo que o seu desrespeito gera a inépcia da denúncia ou da queixa-crime, a qual, por esse motivo, deve ser rejeitada. Tratando-se de rejeição com base na inépcia da acusação, nada impede o novo exercício do direito de ação, com o oferecimento da denúncia ou da queixa-crime devidamente elaborada.

O caso do 8 de janeiro, as denúncias da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra mais de mil pessoas que, de algum modo, estavam presentes no Quartel-General do Exército ou na Praça dos Três Poderes, no dia da invasão aos prédios do Palácio do Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal, em Brasília, não seguem o entendimento recente dos tribunais superiores quanto à individualização da conduta de cada pessoa.

Desde o 8 de janeiro, o órgão já denunciou 1.037 pessoas. A maioria delas, cerca de 800, foi acusada pelos crimes de incitação de animosidade das Forças Armadas contra as instituições democráticas e associação criminosa, cujas penas somam menos de 4 anos de detenção, em caso de condenação.

As demais, que participaram da invasão das sedes dos Poderes, foram denunciadas por crimes mais graves, como associação criminosa armada, abolição violenta do Estado democrático de direito, golpe de Estado, dano qualificado contra o patrimônio da União, e deterioração de patrimônio tombado, cujas penas podem superar os 30 anos de prisão, na hipótese de serem condenadas.

Ocorre que, ao menos para esses dois grupos, as centenas de denúncias são praticamente idênticas, nas quais se muda apenas o nome e os dados pessoais da pessoa acusada, para identificá-la. As denúncias do primeiro grupo, chamados de “incitadores”, possuem 12 páginas e narram que os acampados do QG contestavam a lisura das eleições, a soltura e candidatura do presidente Lula (PT), e que passaram a pedir ao Exército uma intervenção militar, para “a tomada dos Poderes Constituídos e a instalação de uma ditadura”. Isso é o que consta das denúncias, segundo o jornal Gazeta do Povo.

Um levantamento da reportagem da Gazeta do Povo sobre decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aponta, no entanto, a exigência de que, em acusações contra pessoas envolvidas em crimes coletivos, haja “um esforço de identificação da contribuição” de cada um para a abertura de uma ação penal. Caso contrário, a denúncia deve ser rejeitada.

Esse alerta foi feito logo acima neste artigo, cabendo enfatizar que a narrativa circunstanciada do fato criminoso tem natureza de requisito principal ou essencial, de modo que o seu desrespeito gera a inépcia da denúncia, a qual, por esse motivo, deve ser rejeitada.

Para considerar uma denúncia genérica, o Judiciário se baseia no retrocitado artigo 41 do Código de Processo Penal (CPP), segundo o qual a acusação deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”.

Segundo defensores de alguns participantes do ato de 8 de janeiro, desde o início do caso, a PGR, a polícia e o Judiciário têm falhado na descrição individual das condutas. Os defensores alegam que tudo se iniciou no auto de prisão em flagrante, quando o certo é pelo artigo 312 do CPP, com os presos sendo levados até a autoridade policial, o delegado, que iria tipificar a conduta, de acordo com o fato narrado pelos policiais.

No entanto, na noite do dia 8 de janeiro, foi o ministro Alexandre de Moraes quem primeiro imputou diversos crimes aos participantes, incluindo o de terrorismo, já contestado pela PGR, por não abarcar atos com motivação política.

A contestação se dá também quanto à tipificação, generalizada, a quem estava acampado e a quem participou das invasões. Algumas pessoas que estavam sentadas numa barraca, pacificamente, foram denunciadas. Pelo fato de estarem no QG, imputaram a elas o crime de incitação à animosidade das Forças Armadas contra as instituições, e associação para a prática de crime contra o Estado.

A denúncia trata do caso como se todas as pessoas estivessem uníssonas para um golpe de Estado. Ora, isso está errado, muito errado. Tinha gente querendo deposição violenta de Lula? Talvez, mas a maioria estava questionando a lisura das urnas, pois muitos não estavam satisfeitos com a transparência do processo. Algumas pessoas acreditavam que havia interpretação equivocada da Constituição, e pediam para que as Forças Armadas interviessem para fazer uma recontagem dos votos. Ninguém ali pedia “golpe” ou fazia “terrorismo”.

Quanto aos invasores dos prédios dos Três Poderes, estes deveriam ser denunciados por dano ao patrimônio público. Mas a acusação deveria dizer o que cada um quebrou dentro dos edifícios. Alegar que houve tentativa de deposição do Estado de Direito sem armas é uma falácia. Houve ataque às edificações e não às autoridades.

O que se viu foi uma demonstração de revolta, como outras que já ocorreram antes, em junho de 2013 e na invasão do Congresso pelo MST, em 2006. Em nenhum desses casos os participantes foram acusados de “terrorismo” ou “golpe” de Estado. Daí constatar que, comparativamente, estão usando dois pesos e duas medidas. E isso não é admissível no Estado de direito.

Todavia, a PGR rebate os questionamentos sustentando que cumpre com o requisito da individualização. Faz isso ao separar os denunciados em grupos: os de incitadores (acampados no QG) e os de invasores (que depredaram os prédios).

Em nota publicada em seu site oficial a PGR diz que: “Embora, pela peculiaridade do caso, as denúncias contenham trechos semelhantes - o que é natural, uma vez que versam sobre o mesmo fato (atos de 8 de janeiro) -, as petições narram os diversos comportamentos apurados nos ataques às sedes dos Três Poderes, de modo a permitir que todos os denunciados possam se defender de forma adequada e conforme a legislação, o que será feito no curso da ação penal, se recebida a denúncia pelo Judiciário”.

Há alguns dias, por volta do dia 9, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, declarou que, para ele, há individualização das condutas. “O STF está analisando de forma detalhada e individualizada para que, rapidamente, aqueles que praticaram crime sejam responsabilizados nos termos da lei. Quem praticou crime mais leve terá sanção mais leve, quem praticou crime mais grave terá sanção mais grave”, afirmou.

Segundo a Gazeta do Povo, ainda não se sabe, ao certo, se o próprio STF vai analisar as denúncias, como e quando. Pelo regimento da Casa, essa decisão – que permite a abertura de uma ação penal – é tomada pelo plenário, formado pelos 11 ministros. O texto da regra, no entanto, diz que ela vale para autoridades com foro privilegiado, que não é o caso dos acampados e invasores. Dentro do STF, há sugestões para que, encerradas as denúncias, tudo seja enviado para a primeira instância, onde juízes comuns passariam a tocar os processos.

Assim, data maxima venia, seja no STF ou na primeira instância, não pode a acusação simplesmente fazer um “pacote acusatório”, uma vez que cada conduta e cada réu devem ter tratamento distinto, com especificação dos detalhes.

Portanto, faz-se necessária a exigência de que, em acusações contra pessoas envolvidas em crimes coletivos, haja um esforço de identificação da participação de cada um para a abertura de uma ação penal. Não se podem permitir denúncias genéricas e processos genéricos. Faz-se necessária também a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas. Tudo isso, além da garantia aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Caso contrário, a denúncia deve ser rejeitada.

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021).

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Comentários

  1. Parece que a PGR quer inventar a roda ou mudar o CPP. Claro que precisa respeitar o art. 41 do CPP, com todos os detalhamentos da denúncia, e também conceder sem favores o contraditório e a ampla defesa. Cumpra-se a lei Dr. Wilson Campos. Cumpra-se a lei e tudo conforme seu artigo muito bem narrou e lecionou. Parabéns!!! Kleber JD Couto.

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  2. Stella M. F. Hernandes3 de abril de 2023 às 18:09

    Eu estou 100% de acordo como artigo porque o 8 de janeiro tem muita gente inocente que estava ali só pedindo liberdade e direito de ficar livre do Lula. Gostei demais dessa parte do artigo - Portanto, faz-se necessária a exigência de que, em acusações contra pessoas envolvidas em crimes coletivos, haja um esforço de identificação da participação de cada um para a abertura de uma ação penal. Não se podem permitir denúncias genéricas e processos genéricos. Faz-se necessária também a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas. Tudo isso, além da garantia aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Caso contrário, a denúncia deve ser rejeitada. -
    O senhor falou tudo e de forma acertada como sempre, dentro da lei e do devido processo legal. Parabéns. Att: Stella Hernandes.

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