O PODER DE POLÍCIA MUNICIPAL E O PODER DA POLÍCIA.

 

Temos vivido tempos difíceis. De um lado, as agruras da economia, e de outro, as mazelas sanitárias da doença invisível conhecida como coronavírus. Talvez em razão disso e do despreparo natural de algumas autoridades públicas, não raras vezes, damos de cara com notícias assustadoras de que agentes políticos, invocando o poder do seu cargo, ameaçam dar voz de prisão a cidadãos comuns, ignorando o artigo 5º, inciso LXI da Constituição, afrontando o Estado democrático de direito e rompendo a linha tênue que separa a arrogância do abuso de autoridade.

 

A rigor, o poder de polícia municipal não se confunde com o poder da polícia. Enquanto o primeiro é o poder de que dispõe a administração pública para, nos exatos termos da lei, assegurar o bem-estar geral, impedindo, por meio de ordens, proibições e apreensões, o exercício antissocial dos direitos individuais, o uso abusivo da propriedade ou a prática de atividade prejudicial à coletividade, o segundo tem função policial e representa o poder investigativo, repressivo, ostensivo e judiciário, que recai, regra geral, sobre condutas de infrações penais, cabendo seu exercício aos órgãos previstos no artigo 144 da Constituição da República (polícias federal; rodoviária federal; ferroviária federal; civil; e militar).

 

Em que pese o Supremo Tribunal Federal ter reafirmado o poder dos prefeitos para determinar medidas restritivas durante a pandemia do novo coronavírus, podendo definir quais são as atividades que serão suspensas e os serviços que não serão interrompidos, ainda assim não se pode abusar ou exceder. Jamais esse poder terá a finalidade de aniquilar ou esvaziar os direitos individuais, fundamentais e constitucionais. Ao contrário, objetiva adequá-los ao interesse comum da sociedade.  


Portanto, não prospera a falácia de que o Executivo municipal pode fazer o que bem entende, sob pena de responder em face de ações judiciais de abuso de autoridade, conforme assegura a Lei 13.869/2019, que define os crimes cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído. A lei prevê medidas administrativas (perda ou afastamento do cargo), cíveis (indenização) e penais (detenção, prestação de serviços ou penas restritivas de direitos). As penas podem chegar até quatro anos de reclusão.  

 

Oportunamente, cumpre observar que o comandante das polícias civil e militar de Minas Gerais é o governador, que, por sua vez, não usa de coação, coerção ou ameaças constrangedoras contra o cidadão, preferindo a linha do bom senso, da civilidade e da liturgia do cargo. A incontinência verbal, permissa venia, fica por conta apenas do prefeito reeleito, que mal assessorado responsabiliza o belo-horizontino pelo retorno do coronavírus, numa segunda onda anteriormente prevista por médicos e especialistas.  

 

O que me preocupa nesse imbróglio todo é que o prefeito de BH disse que, agora, não terá mais “multinha” não, e que será prisão. Ora, ora, senhor prefeito, Vossa Excelência não pode decretar, em hipótese alguma, a prisão de quem sair às ruas, sob o risco de violar a Constituição. Apenas o presidente da República pode tomar esse tipo de medida, e em estado de sítio, que precisaria ser chancelado pelo Congresso. No entanto, no caso de prisão, nem o Congresso pode estabelecer essa regra, pois esta só pode ser aplicada no estado de sítio. E compete ao presidente da República a sua decretação, após a autorização do Congresso.

 

Então, a coisa não é assim tão fácil (sair decretando a prisão do cidadão comum). Por ser considerado um crime de menor potencial ofensivo, ninguém vai ser encarcerado apenas por sair de casa. Isso seria o absurdo dos absurdos no Estado de direito. No máximo, a pessoa pode ser levada à delegacia, onde será feito um ato circunstanciado, como se fosse um boletim de ocorrência, e pode até ser estipulada uma multa. Mas, na prática, depois disso, a pessoa é liberada. Contudo, se a situação for grave de transmissão da doença, de forma constatada e não apenas cogitada, e a pessoa voltar a desrespeitar a determinação, pode ser que ela se enquadre no artigo 131 do Código Penal, que permite prisão em flagrante de quem “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”.  

 

Porém, sopesando as situações, o poder público municipal não pode sair por aí dizendo que vai prender as pessoas, mesmo porque a pandemia já é mal suficiente para atormentar a sociedade, que já amarga um ano de muitas dores, perdas, infortúnios e desesperança.      

 

De sorte que, apesar dos riscos iminentes em razão da pandemia, o remédio aconselhável no trato com a cidadania é respeito, e não ameaças de prisão ou recados disléxicos por meio da mídia, com arroubos e rompantes de arrogância e tirania.  

 

Ademais disso, como a questão acima suscitada me causou estupefação, nos aspectos autocráticos e autoritários, retomo o tema básico do poder de polícia e do poder da polícia, para que não restem dúvidas, embora a problemática inerente seja extensa e quase inesgotável. Ora, muito se confunde o poder de polícia (supremacia do interesse público) com o poder da polícia (corporações da área de Segurança Pública). Pois bem, para o doutrinador Matheus de Carvalho (Manual de Direito Administrativo/2019) o poder de polícia administrativa atua de forma preventiva quando emite portarias, regulamentos, com a finalidade de adequar horários de festas, de funcionamento de estabelecimentos, dentre outros. Exerce sua função de forma repressiva quando, dispersa multidões que não observam a lei, apreende materiais irregulares para a venda. Também atua fiscalizando quando, inspeciona produtos para o consumo, vistoria de automóveis, com o intuito de prevenir danos às pessoas.

 

Assim, a polícia administrativa tem como função específica, exercer atividades de natureza tipicamente administrativa, fazendo valer o que já está legalmente previsto. Dessa maneira, aplica na prática a supremacia do interesse público no caso concreto, ou seja, atua quando há a necessidade de restringir os direitos de liberdade e propriedade do particular.

 

Já noutro norte, o poder da polícia, referente à atividade de segurança pública, é dividido pela doutrina em polícia administrativa e polícia judiciária. Vejamos:

 

        I) a polícia administrativa tem caráter eminentemente preventivo, visa, com o seu papel ostensivo de atuação, impedir a ocorrência de infrações.

 

        II) a polícia judiciária tem atuação repressiva, que age, em regra, após a ocorrência de infrações, visando angariar elementos para apuração da autoria e constatação da materialidade delitiva. (Rosmar Alencar; Nestor Távora; Curso de Direito Processual Penal; 2019).

 

Nessa mesma linha de entendimento, Alexandre Mazza (Manual de Direito Administrativo/2013) destaca que, no que se refere à segurança pública, a polícia administrativa realiza suas funções segundo os ditames do direito administrativo. Já a polícia judiciária, rege-se pelas regras do direito processual penal, incluindo a polícia civil e a polícia federal.

 

Como visto, pelo todo exposto, restou clara a diferenciação entre poder de polícia (limitação administrativa) e poder da polícia (segurança pública). A primeira atua no âmbito do direito administrativo e a segunda na esfera do direito processual penal.

 

Encerrando, vale citar o emérito professor e doutrinador Hely Lopes Meirelles em Direito Administrativo Brasileiro: “A polícia administrativa ou poder de polícia é inerente e se difunde por toda a Administração; a polícia judiciária concentra-se em determinados órgãos, por exemplo, Secretaria Estadual de Segurança Pública, em cuja estrutura se insere, de regra, a polícia civil e a polícia militar”.  

 

Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB-MG/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG).

 

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Comentários

  1. EXCELENTE! MUITO BOM E QUE SIRVA DE LIÇÃO PARA O PREFEITO "DONO DA VERDADE". LEI É PARA CUMPRIR E NÃO SE FAVORECER DELA DE FORM ATORTA. PARABÉNS DR. WILSON CAMPOS PELA AULA. ABR. WANICE LINHARES.

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