DOAÇÃO DE IMÓVEL PÚBLICO PARA A INSTALAÇÃO DE EMPRESA PRIVADA.

 

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Regras para a doação de terrenos públicos.

O tema é complexo e se refere à legalidade de os municípios efetuarem a doação de imóvel público (geralmente lotes de terrenos) para empresas privadas instalarem suas atividades econômicas.

A lei pertinente deve ser observada. A doação de bens públicos imóveis é regulada pelo art. 17 da Lei 8.666/1993, que a permite se cumpridas algumas formalidades: interesse público devidamente justificado, avaliação do imóvel, autorização legislativa, licitação na modalidade concorrência, doação modal (com encargos ou obrigações) e doação condicional resolutiva (com cláusula de reversão).

Os requisitos devem ser cumpridos. O interesse público geralmente está presente, pois a implantação de empresas promove o desenvolvimento do município através da geração de novos empregos, melhoria das condições de vida locais e aumento da arrecadação de tributos.  

Alguns critérios são regimentais. A avaliação do imóvel deverá ser feita por comissão especialmente nomeada para a tarefa, a qual procederá à perfeita identificação do bem e estabelecerá o valor do mesmo, com base em pesquisas de mercado. Importa registrar que o setor de contabilidade da Prefeitura deverá ser informado a respeito do preço estimado pela comissão de avaliação, pois a doação causará alterações no balanço patrimonial do município, anualmente informado ao Tribunal de Contas. 

Prefeito e vereadores haverão de ter sintonia quanto à finalidade econômica e social e ao interesse público da doação. A necessidade de autorização legislativa será preenchida com a aprovação pela Câmara Municipal de projeto de lei a ser encaminhado pelo Poder Executivo contendo o seguinte: identificação do imóvel a ser doado e da empresa beneficiária, fixação da utilidade econômica a ser dada ao bem, enumeração dos deveres do donatário (de modo geral, a criação de um número certo de empregos diretos em um determinado prazo), nomeação do órgão público responsável pela fiscalização do implemento das obrigações (Secretaria Municipal de Indústria e Comércio, por exemplo), e instituição das hipóteses de reversão do imóvel ao patrimônio público. 

A escolha da pessoa física ou jurídica beneficiada pela doação deve ser imparcial e transparente. É exigida licitação na modalidade concorrência. A seleção do vencedor com fundamento na “maior oferta” costuma ser empregada para alienações de natureza precária, por exemplo, outorgas de uso de imóvel público (cessão, autorização, permissão, concessão, etc.). Todavia, esse critério é inadequado para escolher o donatário de um bem público, porque não faz sentido cobrar por uma doação. A eleição do donatário com base no critério do “melhor projeto” parece uma solução melhor, através da análise dos seguintes parâmetros: valor do investimento, área construída ou aproveitada, número de empregos gerados (diretos e indiretos), prazo de execução e/ou de instalação e/ou de início de operação, incremento na arrecadação municipal, potencial para criar valor ao parque industrial (atração de novas empresas e/ou criação de cadeia de fornecimento local e/ou instituição de arranjo produtivo local), etc. 

O protecionismo a determinada atividade é inadmissível. É conveniente que haja diversificação nas atividades econômicas instaladas no parque industrial, assim, eventual preferência por um determinado tipo de empresa (ou restrição a algum tipo de empreendimento) somente deve ser adotada pela Prefeitura quando houver razões especiais, de natureza econômica (por exemplo, criação de cadeia de fornecimento local e/ou instituição de arranjo produtivo local) ou ambiental (e.g., quando o município se localizar em área de preservação e/ou de mananciais). Recomenda-se a designação de comissão especial destinada a avaliar os projetos/empreendimentos que acorrerem à licitação e eleger o mais vantajoso ao município.

Uma contrapartida pode ser exigida. A espécie de doação a ser escolhida é o quesito mais importante, não se admitindo a chamada “doação pura”, isto é, feita por espírito de generosidade, sem subordinação a qualquer acontecimento futuro ou incerto e sem a exigência de cumprimento de encargo ou obrigação por parte do favorecido. A Lei 8.666/1993 é clara a esse respeito ao dispor que o instrumento de doação deverá obrigatoriamente, sob pena de nulidade, mencionar os encargos do favorecido, o prazo de seu cumprimento e a cláusula de reversão (art. 17, § 4º), esta última para o caso de cessarem as razões que justificaram a dádiva, de sorte que o imóvel reverterá ao patrimônio da pessoa jurídica doadora, vedada a sua alienação pelo beneficiário (art. 17, § 1º).

As cláusulas da Escritura ou do Termo de Doação devem ser claras e objetivas quanto à disponibilidade ou indisponibilidade do terreno público para garantias diante de terceiros. O donatário poderá oferecer o imóvel em garantia de financiamento, caso em que a cláusula de reversão e demais obrigações serão garantidas por hipoteca em segundo grau em favor do doador (Lei 8.666/1993, art. 17, § 5º). Todavia, tal faculdade pode viabilizar a ocorrência de fraudes contra o município, possibilitando que o donatário contrate empréstimos supostamente destinados ao aumento da produção e à melhoria das condições de trabalho dos empregados e os desvie para finalidades escusas, deixando posteriormente de pagar a dívida, a qual será executada pelo credor e, se não for quitada espontaneamente pelo donatário, o bem doado será penhorado e levado a leilão, resultando que, ao final, o município não obteve os postos de trabalho prometidos, perdeu o imóvel doado e ainda enriqueceu ilicitamente o donatário. 

Nesse sentido, por cautela, o município pode vedar a alienação a terceiros do bem doado, sob qualquer título, no todo ou em parte, inclusive em garantia de financiamento, pois não está obrigado a incluir no instrumento de doação a licença veiculada pelo art. 17, § 5º, da Lei de Licitações, que se trata de uma liberalidade do doador. O município também pode estabelecer qual o percentual máximo do valor do imóvel a ser onerado em favor de dívidas, de sorte a não correr o risco de perdê-lo totalmente. Mas quanto a essas garantia e alienação, o donatário deve ser ouvido e orientado, evitando-se futuras demandas judiciais.    

As obrigações legais e sociais devem ser cumpridas, parte a parte (pelos setores público e privado). A doação poderá ser precedida de um período de outorga de uso, ocasião em que o empresário demonstrará o prévio e escorreito cumprimento das obrigações – instalação da empresa, criação de empregos, geração de receita tributária, etc. 

Os compromissos assumidos devem ser respeitados. Assim, os encargos serão transformados em condição suspensiva e a doação poderá ser feita com índole definitiva, sem gravames, eis que já cumpridos anteriormente. Trata-se de uma solução inteligente, pois, em caso de descumprimento dos encargos, pode ser mais fácil reverter uma posse precária.  

Em outras palavras, tratar-se-á de uma “promessa de doação”, passível de não se concretizar no futuro.  

O combinado não sai caro. A opção pela condição suspensiva (outorga de uso com perspectiva de doação definitiva) em vez da condição resolutiva (doação com encargos e cláusula de reversão) não enfrenta vedação legal e parece atender melhor ao interesse público.  

No entanto, essa solução poderá enfrentar a resistência dos empresários, eis que o oferecimento do bem em garantia não será mais possível, ao menos durante o período probatório, isto é, no decorrer da precária e preliminar outorga de uso.  

Essa sistemática é valiosa, mas apenas em favor do município, pois afasta as empresas descapitalizadas e/ou mal-intencionadas. Daí a necessidade da seriedade do negócio jurídico e dos seus termos. 

Deve ser esclarecido, por fim, que o fato de o empresário descumprir as condições acordadas não garante a imediata e automática reversão do bem ao patrimônio público, pois, em regra, alguma obra ou benfeitoria terá sido realizada sobre o terreno, e o detentor se julgará no direito de ver-se previamente ressarcido quanto a esses acréscimos. Mais uma questão que poderá se transformar em demanda judicial.

Assim, é de se prever que o município terá de ajuizar ação de reintegração para recuperar o imóvel. E como já dito antes, o documento firmado requer completude. Daí a relevância de ser pactuado um rigoroso instrumento de contrato, que contemple minuciosamente todas as hipóteses de reversão do bem e preveja a forma de indenização das benfeitorias executadas.

 

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Doação de terreno municipal para empresa não é ato de improbidade. 

A doação de terrenos municipais que segue rito legal no Poder Legislativo e gera benefícios à cidade não pode ser considerada improbidade administrativa. Assim decidiu o juiz Rodrigo Soares, da 5ª Vara Cível de Mauá (SP), ao extinguir tentativa do Ministério Público de responsabilizar um ex-prefeito da cidade por benefícios concedidos para a construção de um shopping, a partir do ano 2000.

Com base em lei aprovada na época pela Câmara Municipal, o então prefeito transferiu terrenos à empresa responsável pelo empreendimento e concedeu, por dez anos, isenção de IPTU referente aos imóveis doados, além de liberar o ISS para a construção do shopping. Em troca, foi estipulado que a empreiteira deveria reconstruir duas creches e executar obras de infraestrutura e reurbanização.

Para o Ministério Público, a doação seria ilegal, pois foi feita sem licitação, e inexistiria motivo para dar isenções tributárias a um empreendimento com a capacidade de atrair interesse privado. A ação cobrava que o prefeito e as empresas que participaram da negociação pagassem R$ 10,4 milhões por danos materiais — valor baseado na somatória das áreas transferidas com as isenções tributárias vigentes por dez anos — e R$ 2 milhões por danos morais. Pedia ainda que Justiça declarasse nulos a lei e outros procedimentos que levaram aos benefícios.

O advogado Igor Sant’Anna Tamasauskas, do Bottini e Tamasauskas Advogados, alegou que o ex-prefeito não agiu com dolo ou culpa nem causou prejuízo ao erário, dados os benefícios gerados. Afirmou que a dispensa de licitação foi legal, pois as empresas beneficiárias já eram donas de imóvel vizinho à área doada, e que a lei municipal garantiu a publicidade do processo.

O juiz que analisou o caso rejeitou a tese de improbidade e entendeu que a prefeitura seguiu as regras da moralidade, da isonomia e da impessoalidade, amparando-se em lei municipal “presumivelmente debatida e regularmente aprovada pelo Poder Legislativo, propiciando a intervenção de quaisquer supostos interessados”. Segundo ele, a Lei 8.883/1994 autoriza a dispensa de licitação para doações com encargo, quando há interesse público devidamente justificado.

O juiz disse que o shopping proporcionou “vários e consideráveis benefícios” a Mauá, com a geração de empregos e obras viárias, e que as empresas rés “induvidosamente cumpriram os encargos impostos na doação, dentre eles, as reconstruções de duas creches municipais”. Como a ação foi proposta em 2007, ele criticou a tentativa de responsabilizar o ex-prefeito e as empresas somente após a inauguração.

“Enquanto a (grandiosa) obra não se achava iniciada, ou mesmo em andamento, ninguém ousou pedir que o Judiciário viesse a embargar o andamento dos trabalhos, evitando, com isso, não apenas que se perpetuasse a vislumbrada ‘improbidade’, mas também se evitasse que as rés, no cumprimento dos encargos, desembolsassem milhões de reais como contrapartida à doação recebida. Agora, concluída a obra e cumpridos os encargos, percebendo-se que foram gerados benefícios à cidade, como entender que houve improbidade administrativa nessa doação?”, questionou o juiz. (Proc. 0017190-58.2007.8.26.0348). 

 

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TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MG (TCEMG) – Doação de bens imóveis é tema de consulta do prefeito de Camanducaia ao TCEMG. 24 março 2017. Voto do conselheiro Claúdio Terrão foi aprovado pelo Pleno.

Em consulta (processo 932774) apresentada ao TCEMG, o prefeito municipal de Camanducaia questionou se seria “possível processo licitatório para a concessão de direito real de uso com posterior doação de bens imóveis para indústrias – com base na Lei nº 8.666/1993 e demais legislações –”, ao final do contrato.

A resposta do Tribunal, ficando vencido o conselheiro Gilberto Diniz, acompanhou o voto do Conselheiro Cláudio Terrão, aprovado na sessão plenária de quarta-feira (22/03), que esclareceu não ser possível a realização de procedimento licitatório para a concessão de direito real de uso com previsão no contrato administrativo de posterior doação de bens imóveis.

Conforme relatório da Assessoria de Súmula, Jurisprudência e Consultas Técnicas, é a primeira vez que o Tribunal se manifesta sobre o questionamento formulado. O consulente assinala que “devido à insegurança jurídica decorrente da ausência de transferência da propriedade de bem imóvel ao concessionário, muitas empresas não se interessam em instalar nos municípios em que os terrenos públicos são oferecidos sob a forma de concessão de direito real de uso”. Segundo o relator, “o suposto problema narrado pelo consulente parece envolver mais questões afetas ao interesse particular das empresas do que ao interesse público propriamente dito”.

Cláudio Terrão argumenta que, “com base nas regras e condições fixadas objetivamente pela Administração, caberá às empresas verificar se o contrato é atrativo, calculando a sua viabilidade econômica, a taxa de retorno do investimento e o payback (o prazo de recuperação do capital investido)”. O relator também adverte: “ainda que a modelagem da licitação e o estudo acerca do prazo e das condições a serem impostas ao concessionário demandem uma análise prévia acerca do interesse do mercado pela Administração, tem-se que a atratividade do contrato é uma questão que reside eminentemente na esfera privada das empresas interessadas, de modo que à Administração cumpre, apenas, fixar as regras da licitação e da concessão em si”.

“Entendo que o contrato administrativo hipotético a que alude o consulente não encontra amparo no ordenamento jurídico”, ressaltou Cláudio Terrão, tendo em vista que a doação de imóveis da Administração Pública possui regras próprias na Lei nº 8.666/93 e “a concessão de direito real de uso gratuita por tempo indeterminado assemelha-se materialmente a uma doação condicional” O relator argumenta que a pretensão de combinar dois institutos jurídicos típicos – a concessão gratuita e a doação – criaria “uma nova e atípica figura contratual para a Administração que não estaria adstrita às regras formais estabelecidas pela Lei nº 8.666/93 para a doação”.

Para Terrão, a concessão de direito real de uso, com ônus, sendo que haveria a previsão no contrato de uma futura doação, leva ao entendimento de que o Poder Público estaria, “em verdade, efetuando a venda do imóvel com reserva de domínio, uma vez que a propriedade plena do bem somente será transferida ao particular após determinado prazo e satisfeitas as condições acordadas, oportunidade em que cessarão os pagamentos à Administração em virtude da concessão”. O relator concluiu que, “embora a concessão de direito real de uso e a doação de bens imóveis possuam certa similaridade quanto aos respectivos procedimentos licitatórios que as antecedem (utilização, como regra, da modalidade concorrência e tipo de julgamento maior lance ou maior oferta para as duas finalidades), não nos parece possível a cumulação dos dois institutos em um mesmo contrato administrativo”.

Fonte: https://www.tce.mg.gov.br/Doacao-de-bens-imoveis-e-tema-de-consulta-do-prefeito-de-Camanducaia-ao-TCEMG-html/Noticia/1111622243. 

 

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É possível regularizar o imóvel doado pela Prefeitura?

Quase sempre, sob o ponto de vista social, alguns municípios doam imóveis de sua propriedade para algumas famílias, com o fim de que estabeleçam nesses imóveis suas moradias. Com essas doações, as famílias passam a morar nos imóveis e acreditam que a doação, por si só, não dependeria de iniciativas outras para a regularização desses imóveis.

Diante dessas doações, é importante que os interessados saibam se essa doação do Poder Público foi realmente realizada ou se haveria necessidade de outros procedimentos para a regularização desse imóvel. Isto, porque, caso não haja a correta regularização da propriedade do imóvel, não é possível que o interessado negocie esse imóvel ou o transmita a seus herdeiros, tornando sua condição de possuidor extremamente precária. A falta da correta regularização, nestes casos, seria arriscada a ponto de o donatário (aquele que recebeu a doação) poder inclusive vir a perder esse imóvel.

Desta forma, o presente artigo pretende tratar sobre como poderia o interessado regularizar a propriedade do imóvel recebido em doação pelo município. Como de praxe, o assunto será abordado em tópicos para a melhor compreensão do leitor.

I - Qual o procedimento para a doação de um imóvel público a um particular?

A lei permite que um imóvel seja doado ao particular e para tanto alguns requisitos devem ser respeitados. Os requisitos são estipulados pelo próprio município, tendo em vista que ele possui autonomia para legislar em matéria local (art. 30, I, CF). O que significa dizer que muito embora existam regras em lei federal para tanto, é preciso que sejam observadas as leis de cada município.

No entanto, com frequência os municípios estabelecem os seguintes requisitos:

a) Deve existir interesse público devidamente justificado (art. 17, Lei 8.666/93): o que significa dizer que o poder público não pode doar um imóvel a seu bel-prazer, sem qualquer motivo. Deve haver um interesse público justificado.

b) Lei específica: Antes de se efetivar a doação é necessário que o município edite lei específica para tanto.

c) Procedimento licitatório (licitação): O procedimento de licitação está previsto na Lei nº 8666/1993 e deve anteceder a doação de imóveis. No entanto, em alguns casos este procedimento é dispensado, como por exemplo, aquela doação com interesse público devidamente justificado.

d) Escritura Pública de Doação: A lei estabelece que deve haver a assinatura de escritura pública, título necessário para a transferência do imóvel por doação.

Colocados os requisitos acima, é oportuno dizer que o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais já se pronunciou a respeito do assunto, no julgamento da Consulta nº 700.280. Vejamos:

“(...) os bens públicos, quaisquer que sejam, podem ser alienados, por meio de doação a particulares, desde que satisfeitas determinadas condições, tais como desafetação, se for o caso, autorização legislativa e, sobretudo, o reconhecimento de interesse público, pois, na Administração, não se faz o que se quer, mas apenas o autorizado em lei.”.

Na leitura da decisão acima observa-se a palavra "desafetação". Daí pode surgir uma outra dúvida. O que seria desafetação?

II - O que é desafetação?

Desafetação e afetação são termos que dizem respeito ao fim que está sendo dado ao bem. Se o imóvel está sendo usado para determinado fim público, diz-se que ele está afetado. Lado outro, se o imóvel não está sendo utilizado para um fim público, ele está desafetado.

Caso o imóvel a ser doado esteja afetado, o poder público deve desafetá-lo, previamente.

III - Como regularizar o imóvel doado?

Finalizadas as explicações acima, pergunta-se: Com a Escritura Pública o particular se torna o proprietário do imóvel?

Não, não se torna seu proprietário. Observe que após a assinatura da Escritura Pública ela deve ser levada a registro no Cartório de Registro de Imóveis competente. Diz-se competente porque o Cartório de Registro de Imóveis não pode ser de livre escolha do interessado. Deve ser aquele em que está registrado o imóvel.

Na prática, o interessado deverá levar a Escritura Pública para que seja registrada na matrícula do imóvel. O Oficial de registro avaliará o título e se posicionará da seguinte maneira: ou ele a registrará, sem maiores dúvidas; ou devolverá uma nota de exigência ao interessado, solicitando outros documentos para o registro.

Caso haja exigência, o interessado poderá apresentar todos os documentos para o efetivo registro ou, discordando da posição do registrador, poderá discutir a questão de forma a argumentar seu ponto de vista. Isto deverá ser feito por meio de um procedimento chamado suscitação de dúvida.

IV - Pode haver complicação no procedimento de regularização?

O principal documento do imóvel é sua matrícula, um documento que fica arquivado no Cartório de Registro de Imóveis. Com a leitura deste documento é possível verificar um histórico do imóvel - quem foi seu primeiro proprietário e quem foram os proprietários seguintes, as doações e muitos gravames que possam incidir sobre o imóvel.

A sistemática dos cartórios exige que este histórico siga uma ordem cronológica. Em outras palavras, o imóvel deve primeiro pertencer ao proprietário A, ser passado ao B e só então ao C. Não se pode pular etapas. Tecnicamente, isso se chama princípio da continuidade registral.

Um exemplo prático para melhor compreensão é o seguinte: Maria é proprietária de um imóvel e promete vendê-lo para Joaquim por meio de um documento particular (Contrato de Promessa de Compra e Venda). Joaquim, que já está na posse do imóvel, pretende passar o imóvel para Douglas. Ao final, para que Douglas se torne o proprietário, antes é preciso que Maria faça uma Escritura de compra e venda para Joaquim e que esta escritura seja registrada, o que fará com que a propriedade vá para Joaquim. Só assim, depois desse trâmite, será possível que Douglas registre o imóvel em seu nome.

Trazendo esta situação para a doação de imóvel pelos municípios, muitas vezes o município tampouco chega a registrar em seu nome a propriedade do imóvel, o que faz com que o donatário (aquele que recebe o imóvel) tenha dificuldades na regularização deste imóvel.

Portanto, apesar de todo o procedimento estar previsto em Lei, na prática é fundamental que a documentação relativa ao imóvel seja analisada minuciosamente. Só assim será possível avaliar as dificuldades na regularização do imóvel. E podem surgir outras dificuldades, de maneira que cada caso é um caso.

V - É possível regularizar o imóvel público doado, com a usucapião?

É pacífico o entendimento de que não pode o interessado adquirir um imóvel público por meio de usucapião. Este procedimento para regularizar imóveis pode até ser útil quando o bem não é público. Note-se que é consabido que a Constituição Federal, em seus artigos 183, § 3º, e 191, parágrafo único, estabelece expressamente que “Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”. O tema também é retratado no Código Civil, dispondo o artigo 102 que “Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”. Nesse mesmo sentido, ainda sob a égide do Código Civil o STF editou a Súmula nº 340, segundo a qual, “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”. 

 

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Prefeitura anula cessão de terrenos e surpreende empresários.

O Jornal DeFato, de Itabira, em matéria de 17/03/2021, dá notícia ampla no sentido de que, 15 (quinze) empresas de Itabira perderam o direito de uso de terrenos cedidos pela Prefeitura. A anulação dos contratos foi publicada pelo governo municipal e os empresários afirmaram terem sido apanhados de surpresa. A notícia se deu através de ofício, sem esclarecimentos maiores. Segundo afirmam os empresários, a decisão engessa negócios já prejudicados pela pandemia e coloca em xeque o emprego de centenas de trabalhadores.

Trata-se do chamamento público 2/2020, homologado pelo ex-prefeito da cidade, Ronaldo Magalhães. O processo concedeu áreas industriais e produtivas no Distrito Industrial e nos bairros Fênix, Novo Amazonas, Major Lage, Colina da Praia, Pedreira e Candidópolis. A licitação contemplou as empresas Kitorresmo, Agile, Odontoserv, Superconstru, Transfigueiredo, Nitronel, HR Domínio, Ferraço, Engemec, Avelândia, Engeter, Construtora Linhares, Lemaq, Itacoop e A.P.S Duarte Serviços e Locações.

O extrato do aviso de anulação consta na página 4 do caderno “Primeiro Plano”, no jornal Hoje em Dia de 12 de março. O documento é assinado por Breno Carvalho Lage Pires, secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia, Inovação e Turismo (SMDECTIT). De acordo com o extrato, a anulação se baseia nos termos do artigo 49, da Lei 8.666/93, que versa sobre ilegalidade no procedimento.

O governo municipal não explicou o porquê da anulação dos contratos.

Entre as empresas atingidas está a M2 Ferraço, que soma 85 funcionários em seu grupo empresarial e tem planos de chegar a 120 colaboradores com a expansão do negócio. Neste momento, os planos estão sobre a mesa e a direção pensa no que fazer. O sócio proprietário, conta que a empresa vem passando por desafios imobiliários no bairro Praia, onde tem sede: parte das áreas que ocupa é alugada e seu proprietário tem outros projetos para os imóveis. A expectativa do empresário estava na expansão para o Distrito Industrial, já que a empresa dele conquistou no local a cessão de um terreno de aproximadamente 2 mil m².

“Nós concorremos, fizemos um plano de negócios e de investimentos. Definimos o crescimento da empresa. Ficamos assustados com a notícia! O novo governo transmitiu uma mensagem que prezaria pelo desenvolvimento de Itabira. Agora, ao invés da expansão, a Ferraço pode ser obrigada a enxugar”, lamentou o empresário.

Outros empresários também relataram surpresa e consternação. “Participamos do processo de chamamento, muito transparente à época e acreditamos que todo o procedimento estava legal. Se existem irregularidades, o governo deveria ter nos chamado para o diálogo e não enviar uma decisão por ofício, sem deixar claro o que está acontecendo”, contou um empreendedor que optou por não se identificar, temendo represálias.

As empresas foram informadas que o prazo para a assinatura do distrato, ou seja, do encerramento dos contratos de cessão já estava correndo. Por telefone, parte dos representantes ouvidos pela reportagem disseram ter acionado seus advogados, já que a legislação prevê os princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório.

O cancelamento da concessão foi assunto de reunião ordinária dos vereadores da cidade. A Comissão de Indústria, Comércio, Turismo e Desenvolvimento Agrário remeteu ofício ao secretário Breno Pires pedindo esclarecimentos. O colegiado é presidido por Rodrigo Alexandre Assis Silva – “Diguerê” (PTB) -, tem como relator Bernardo de Souza Rosa (Avante) e, na posição de vogal, Neidson Dias Freitas (MDB).

O ofício pede a descrição das irregularidades identificadas pelo município – e se há dano ao Erário público -, além dos documentos comprobatórios. Questiona também se foi garantido o direito de ampla defesa aos empresários e pede a prorrogação do prazo de distrato definido anteriormente. O documento foi protocolado de forma presencial.

“São empresários que apresentaram planos de negócios viáveis para gerar emprego e renda em Itabira; são empresários que têm atividades consolidadas no município. O objetivo da comissão é buscar o diálogo e entender se há um problema e como podemos sanar. Conto com o apoio da Casa para lutarmos por uma classe que gera emprego à cidade”, argumentou Rodrigo Diguerê, durante a palavra aberta da reunião ordinária virtual.

Procurado por empresários prejudicados pela anulação, o vereador Neidson Freitas endureceu as críticas ao governo municipal. O emedebista pediu diálogo à equipe do prefeito Marco Antônio Lage, uma vez que o cancelamento do chamamento público não foi informado à Câmara.

“Para haver diálogo é preciso ter duas vias de comunicação. Nós recebemos a notícia com muito espanto. São empresas que simplesmente receberam uma carta comunicando que estava totalmente suspenso o ato que lhe deram condições de crescerem e investir. Ouvimos tanto na campanha [política] sobre a diversificação econômica, sobre Itabira fortalecer suas empresas e, com menos de 100 dias de gestão, temos mais uma ação sendo desfeita”, discursou o parlamentar.

Neidson frisou que se existem vícios no chamamento público, até então não informados, a Câmara deve convocar, inclusive, o ex-titular da SMDECTIT, José Don Carlos Alves Santos, para ser ouvido.

Itabira pode perder empresas para São Gonçalo, adverte Bernardo Rosa, vice-líder do governo na Câmara, que relatou ter acompanhado o secretário Breno Pires em visita ao Distrito Industrial e, “do que pôde observar, em princípio, há problemas pequenos a serem sanados, sem a necessidade de cancelar todo o processo licitatório”.

Na avaliação do parlamentar, a anulação do processo gera um efeito em cadeia. Entre as empresas, há terciários da mineradora Vale que, para não perderem o contrato para concorrentes, podem migrar para São Gonçalo do Rio Abaixo, cidade vizinha.

“A maioria deles tem prazo para iniciar as obras de expansão, pois tem prazos a cumprir dentro da Vale. Se eles não iniciarem as obras, podem ir para São Gonçalo. Temos que fazer todo o possível para manter esses empresários em Itabira. Não podemos perder mais”, contrapôs o também presidente da 52ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

O presidente da Câmara, Weverton Vetão (PSB), endossou os discursos dos colegas e cobrou uma resposta rápida do governo municipal. “Se não tiver apoio do Poder Executivo para com os empresários, nós teremos o aumento nas demandas da Assistência Social [em função dos desempregados e dos prejuízos trazidos pela pandemia de Covid-19] e nas demais demandas do poder público. Eu não quero acreditar que estamos vivenciando todos esses problemas, ou que a Prefeitura tome medidas de perseguição a empresários”.

COMO VISTO, neste caso concreto, a surpresa dos empresários foi grande, assim como ficaram aturdidos os vereadores do município de Itabira, porquanto não esperavam por uma atitude tão drástica e intempestiva por parte do novo prefeito. O cancelamento da concessão de áreas para 15 empresas da cidade representou perdas para todos os lados e setores. O governo municipal deve explicações à sociedade, à Câmara Municipal e aos empresários, posto que o processo já tivesse sido homologado na gestão anterior. E em assim sendo, por certo os prejudicados acionarão o Poder Judiciário na busca dos seus direitos. 

 

CONCLUSÃO

Destarte, vale observar que, regra geral, as prefeituras podem realizar o chamamento para doação de terrenos públicos, notadamente visando à instalação de atividades empresariais que resultem na geração de empregos para as comunidades locais. A retomada da economia na cidade, o interesse público e a criação de novos postos de trabalho devem restar claros no projeto de lei que deverá ser encaminhado à Câmara Municipal. Mas como já alertado anteriormente, todo cuidado é pouco nessas tratativas entre o público e o privado.  

Enfim, o presente artigo não esgota o assunto nem os procedimentos relativos à doação de imóvel público, mas tão somente estabelece um norte para quem pretenda entender um pouco sobre o tema e/ou tenha a intenção de receber de fato a doação e, posteriormente, regularizar um imóvel dessa natureza.

Wilson Campos (Advogado/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB-MG/Delegado de Prerrogativas da OAB-MG).  

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Comentários

  1. Obrigado Dr. Wilson Campos pela excelente explanação do assunto. Me ajudou muito e ainda mais que na minha cidade eu estou esperando por essa oportunidade para implantar minha empresa ind. de cosméticos, mas a burocracia e a política é coisa de dar medo. Muito obrigado mesmo pela sua aula nota 10. Abração. Parabéns pelo trabalho .Rayner B.

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  2. Achei aqui a informação que eu precisava e fico agradecido pela ajuda doutor Wilson Campos - OAB MG, que eu agora posso conversar com os outros colegas da cidade e ver sobre essa doação de terrenos público para estabelecer a empresa e criar empregos para a cidade, mas como disse o senhor a garantia precisa estar certa porque com política a coisa não é muito favas contadas. Certo?Estou sabendo agora tudo que eu nempensava que poderia acontecer. Fico feliz e agradecido pela excelente ajuda doutor. Abração. Sillas Porto.

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  3. A doação de terreno público deve ser cuidadosa porque o poder público tem forma estranha de agir. Prefeitura e Câmara Municipal precisam aprovar conforme dito aí pelo doctor Wilson Campos. O artigo é esclarecedor e fornece ótimas informações. Muito bom. Abrs doutor e valeu pelas dicas. Ar:Flávio Vergueiro.

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  4. Dr Wilson fizemos pós graduação em Dir. Tributário na mesma época e agora vivo esse dilema das milhares de leis, regras e normas tributárias que travam tudo no país e afasta investimentos. Parabéns pelo amplo artigo da nossa área. Está bem escrito e revela sua conhecida competência em tudo que faz. Sigamos. Boa sorte. Sucesso. Abraços do colega Lucas E.

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  5. Li e reli e continuo precisando de um advogado para me ajudar. Parabéns doutor pelo trabalho. Gostei muito. e aprendi bastante. Vou compartilhsr com amigos que querem a doação para empreender. Agradeço. Att. Helena de Paula.

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