ABANDONO AFETIVO.



 
A proteção dos filhos perante o Estado e a sociedade reside na lei, porquanto encontre amparo na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente, além de contar com a segurança jurídica de outras leis infraconstitucionais, que, objetivamente, impõem condições para atendimento das necessidades vitais dos menores, com fulcro na formação de adultos saudáveis.

O descumprimento voluntário do dever de prestar assistência material, direito fundamental da criança e do adolescente, afeta a integridade física, moral, intelectual e psicológica do filho, em prejuízo do desenvolvimento sadio de sua personalidade e atenta contra a sua dignidade, configurando ilícito civil e, portanto, os danos morais e materiais causados são passíveis de compensação pecuniária.

Algumas famílias têm demonstrado constrangimento com a discussão aberta do abandono afetivo dos pais. A alegação é no sentido de que este assunto é muito íntimo e ainda controverso nas decisões do Judiciário. De certo que sim, mas o direito fundamental do menor deve ser preservado e lhe entregue, independentemente de rubores instantâneos, pois o que interessa é a vida digna do ser humano.

As demandas judiciais para esta questão são sempre muito delicadas. Por um lado, o filho reclama pelo reconhecimento, carinho e atenção dos pais, que são direitos naturais e constitucionais da criança. Por outro, pede indenização pecuniária e dano moral, haja vista o abandono voluntário do pai ou da mãe. Pronto, está formada a contradição entre o afeto e o dinheiro, o que tem causado maior afastamento entre filhos e genitores demandantes.

A questão é polêmica e envolve sentimentos profundos, que remetem ao processo de pesquisa, desde a concepção até o reconhecimento de paternidade, uma vez que a defesa do pai possa existir sob a justificativa de que não tinha conhecimento da existência do filho e que somente veio a conhecê-lo na fase adulta. Daí a demanda judicial, a indiferença das partes, o ressentimento e a dificuldade de entendimento consensual.

Para se chegar a tal demanda, primeiramente é preciso passar pelo conhecimento do que sejam esses diferentes abandonos previstos por lei: I) abandono material - acontece quando um ou ambos os pais deixam de prover a subsistência ao menor de 18 anos sem justa causa; II) abandono intelectual - ocorre quando um ou ambos os pais deixam de garantir a educação primária a seu filho sem justa causa; III) abandono afetivo - caracteriza a indiferença afetiva de um ou ambos os pais.

A Constituição Federal, no artigo 227, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 19, protegem o direito da criança, inclusive de ser criada e educada no seio da família, assistida por toda uma gama de garantias que envolvem afeto, amor, carinho, educação, saúde, alimentação, convivência familiar e comunitária, dentre outros.

Enquanto direitos constitucionais, a aceitação é pacífica e não estremece as relações. Agora, quando transferem para a esfera do dever, exsurge a tese da responsabilidade civil, e essa é questionada, posto que nem todos aceitam o dever de cuidar como um valor jurídico apreciável, com repercussão no âmbito da responsabilização civil. 

Em muitas decisões judiciais já se verificam condenações que variam de R$40 mil a R$400 mil, por abandono voluntário afetivo dos pais, dependendo das possibilidades dos genitores, das necessidades dos filhos e das alegações provadas nos autos.

Nesse sentido, a Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), assevera com tranquilidade que: “Amar é faculdade, cuidar é dever”. Com essa frase da ministra, a Terceira Turma do STJ decidiu ser possível exigir indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo pelos pais.  

Para a Ministra Nancy Andrighi, o dano extrapatrimonial pode estar presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da afetividade, a julgadora deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo. Em um determinado caso concreto, concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai, que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415 mil para R$ 200 mil.

Ao meu sentir, esse último acórdão proferido pelo STJ representa a concretização jurídica do princípio da solidariedade, sem perder de vista a função pedagógica ou de desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Assim, a expectativa é que esse posicionamento deva prevalecer na nossa jurisprudência, visando evitar que outros pais abandonem os seus filhos, em que pese possa ser irrisória ou exagerada a penalidade em dinheiro, mas que seja aplicada de alguma forma, e de preferência, com justiça, dentro da possibilidade de um e da necessidade do outro.

De todo modo, observei que há ainda grande fragilidade jurisprudencial na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito em tal caso, notadamente pela ausência de prova do dano. Ou seja, para ter êxito em favor da criança e do adolescente são necessárias provas.  

No entanto, alguns tribunais de primeira instância ainda entendem pela impossibilidade de se indenizar monetariamente uma pessoa que nunca teve contato com um dos pais, por abandono voluntário deste. Segundo esses tribunais, a questão exige cuidado, uma vez que fixar indenização monetária em tais situações significaria fixar preço para o amor. Seria uma tarifação do afeto. Ou seja, até os tribunais batem cabeça a respeito desse melindroso tema. Portanto, embora controverso e delicado, o respectivo tema tende a merecer a prevalência da decisão de instância superior, com a consequente condenação daquele que praticar o abandono voluntário afetivo.

O que se espera para assunto de tamanha importância é que a família seja preservada, mas que isso não signifique justificar a omissão dos responsáveis para com a prole, mesmo porque o amor não pode ter valor simbólico ou simplesmente estipulado em sentença. O afeto é um complemento essencial e não acessório na vida da criança ou do adolescente.

“Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, da lei nº 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a presença do pai ajude no desenvolvimento da criança”, afirma o jurista Mário Romano Maggioni.

Diante desse panorama, seja de agora ou de antes, recomendo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização, posto que sejam necessárias provas robustas que afastem a prescrição da pretensão e que demonstrem cabalmente o abandono afetivo, o abandono paterno-filial ou a teoria do desamor.

Entendo que é viável a indenização por abandono moral e afetivo, se presentes os pressupostos da responsabilidade civil e se utilizada com bom senso e cautela. É instrumento importante para a adequação do direito de família ao atual contexto constitucional, regrado pela proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos da personalidade e da solidariedade nas relações pessoais. Ainda assim, é extremamente necessário prudência na solução do caso concreto, uma vez que a questão não pode se transformar em meio para obtenção de vantagens, utilizando-se a criança como fantoche para o enriquecimento ilícito, circunstância que somente vem a fortalecer sentimentos mesquinhos e vaidades pessoais, o que deve ser totalmente afastado pelo Direito.

Em suma, acima das diferenças e dos desentendimentos dos pais, há que prevalecer o direito legal do filho menor, além dos indispensáveis valores humanos: a assistência moral, psíquica e social; o sustento, o zelo; o cuidado; a criação; a educação; a companhia. São valores essenciais que o pai e a mãe devem ao filho quando criança ou adolescente.


Wilson Campos (Advogado /Consultor Jurídico/Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG).

Comentários

  1. GRAÇAS A DEUS! OBRIGADA POR ESTE ARTIGO DIVINO!!!
    ESTOU NUMA SITUAÇÃO EM QUE ESTAVA PENSANDO COMO FAZER. MAS AGORA MEU FILHO VAI PODER SORRIR, PORQUE VOU BUSCAR O DIREITO DELE E QUE ELE SEJA FELIZ, PORQUE PARA MIM O QUE IMPORTA É ELE. NÃO ESTOU NEM AÍ PARA O DINHEIRO DO PAI, MAS O PAI DEVE E VAI TER DE PAGAR PELA ESCOLA, REMÉDIO E DAR ATENÇÃO E AMOR QUE ELE MAIS PRECISA. UM FILHO LONGE DO PAI E DA MÃE É MUITO TRISTE, AINDA MAIS QUANDO OS PRIMINHOS E COLEGUINHAS PERGUNTAM PELO PAI, ONDE ESTÁ, QUEM É?
    VALEU DOUTOR WILSON POR ESTES ESCLARECIMENTOS MARAVILHOSOS. EU VOU AGORA PENSAR E JUNTAR PROVAS PARA VER O DIREITO QUE TEM O MEU FILHO NESSES 8 ANOS LONGE DO PAI QUE SUMIU DA VIDA DELE, MAS QUE ESTÁ SEMPRE EM JOGOS DE FUTEBOL, CLUBES, FESTAS E BALADAS. A RESPONSABILIDADE DELE VAI SER JULGADA PELA JUSTIÇA. EU QUERO APENAS O QUE É DE DIREITO DO MEU FILHO. NADA MAIS. OBRIGADA PELA LUZ DOUTOR WILSON. EU NOME É JULIANA R. M. TAVARES. - B.H.

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  2. Muito importante estes esclarecimentos para as pessoas. O brasileiro tem preguiça de ler, assim como o Lula que disse nunca ter lido um livro. Isso é triste e lamentável para o povo brasileiro. Ler e reler um artigo, uma estória, um texto, um livro, etc, pode ser valoroso para a vida da pessoa. Este artigo do Dr. Wilson Campos por exemplo foi nota dez para as minhas convicções familiares e entendimento do que pode e não pode ser feito para a proteção do filho que sofre o abandono afetivo do pai ou da mãe. Pai e mãe abandonam filhos. Triste mas é verdade. Agradeço o doutor Wilson pela informação e que Deus o proteja. Juliano H. S. Zacarias, e família.

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