O ANTES E O AGORA DA SERRA DO CURRAL.

 

Em 17 de dezembro de 1958, o Governador Bias Fortes solicitou ao Ministro de Educação o tombamento da Serra do Curral, em Belo Horizonte. O parecer do Departamento Jurídico do Estado, que fundamentou o pedido, manifestava a preocupação do governo com as atividades mineradoras, consideradas capazes de provocar o desaparecimento da serra.

O parecer afirmava ainda: “(...) Não pairam dúvidas sobre a possibilidade do tombamento da aludida serra; os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens são susceptíveis de tal medida, quando dotadas pela natureza de uma feição notável e inconfundível. Será desnecessário que nos percamos em considerações estéticas para acentuar a beleza da Serra do Curral, com sua silhueta inconfundível e bem característica, tão ligada à nossa Capital”.

O processo de tombamento recebeu o número 591 – T – 58, e foi encaminhado para diversas diligências, em 06/01/1959.

No dia 21/09/1960, com a inscrição de nº 29, às folhas 08 do Livro de Tombo nº 01 (Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico), efetivou-se o tombamento do conjunto paisagístico do pico e da parte mais alcantilada da Serra do Curral.

De acordo com a inscrição: “(...) a área tombada abrange uma faixa de 1.800 metros de largura, tendo por eixo o prolongamento da Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, faixa esta delimitada, em baixo, pela linha do nível à cota 1.150 metros e, em cima, pela linha de cumeada da Serra do Curral, estendendo-se de um e de outro lado da referida Avenida Afonso Pena por duas retas paralelas, cada qual correndo a 900 metros de distância do mesmo eixo”.

Em setembro de 1973, por determinação do Governador Rondon Pacheco, foi constituída uma comissão especial para avaliar as atividades de mineração na Serra do Curral. A área tombada foi rigorosamente demarcada pelo Instituto de Geociências Aplicadas – IGA, sob acompanhamento do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).

A Companhia Urbanizadora da Serra do Curral - CIURBE, sociedade de economia mista controlada pelo Estado de Minas Gerais e proprietária dos terrenos, deu início à implantação da chamada “Cidade da Serra”, em 1969.

A urbanização foi concluída por sua sucessora, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado de Minas Gerais - CODEURB.

Os projetos de parcelamento foram aprovados pela Prefeitura de Belo Horizonte, em 1973 (Decretos nºs 2.317 e 2.383), com a denominação do local para Bairro das Mangabeiras.

Em fevereiro de 1975, o SPHAN procedeu à vistoria no Bairro e, posteriormente, solicitou à CODEURB que promovesse, junto ao Estado e à Prefeitura, três alterações nos decretos de aprovação, visando adequar as normas específicas de edificações às condições de conveniência e interesse da preservação da paisagem tombada.

As três alterações, de acordo com o ofício assinado em 08/05/1975, seriam: 1ª) limitar a taxa de ocupação a 40%; 2ª) limitar a 90% da área de cada lote a soma dos pisos cobertos da edificação nela projetada (essa proposição visava a reduzir o impacto, sobre a paisagem, dos aproveitamentos excessivos das elevadas declividades das encostas); 3ª) considerar “non aedificandi” todos os terrenos situados acima do Anel da Serra (atual Rua José do Patrocínio Pontes).

A CODEURB considerou as duas primeiras proposições inviáveis, na medida em que os proprietários dos lotes residenciais haviam adquirido o direito de construir segundo as prescrições do decreto vigente; acrescia a circunstância de muitos dos lotes já estarem edificados de acordo com essas normas. Quanto à segunda proposta, submeteu-se à consideração do Governador Aureliano Chaves que, por sua vez, a encaminhou ao Prefeito Luiz Verano.

Em 02/12/1975, pelo Decreto nº 2.820, a Prefeitura de Belo Horizonte, considerando “que cumpre ao Município preservar suas reservas naturais”, excluiu do loteamento aprovado os quarteirões de números 20, 24 e 39, determinando ainda que: “1) os mesmos passam a constituir área verde; 2) em nenhuma hipótese será permitido qualquer tipo de construção naquela área”.

Nessa ocasião houve negociações no sentido de se permutar o lote nº 1 do quarteirão 39, de propriedade do Instituto Hilton Rocha, por área equivalente no quarteirão 22, o que asseguraria resguardar todos os contrafortes da serra como áreas de preservação ambiental. Todavia, em 01/06/1976, o Decreto nº 2.895 excluiu da condição de “non aedificandi” o quarteirão nº 39, o que facultou à prefeitura aprovar o projeto de construção do Instituto Hilton Rocha no local.

No entanto, quando da venda do terreno do Estado de Minas Gerais para o Dr. Hilton Rocha, o poder público fez constar na escritura registrada em Cartório, lavrada em 07/05/1974, algumas restrições de uso, segundo as quais: “O local não poderá ter outra destinação senão a de ser sede de um Instituto Oftalmológico e de um Centro de Pesquisa e Assistência Oftalmológica”. “A inobservância da destinação da área implicará na reversão do terreno objeto da presente escritura ao domínio da outorgante vendedora ou sua sucessora”. Ou seja, a reversão se daria a favor do Estado de Minas Gerais, por ter sido a CIURBE uma empresa estatal.

Os princípios que fundamentaram o tombamento da Serra do Curral estabeleceram com clareza os dispositivos de proteção à paisagem no Bairro das Mangabeiras, contemplando os terrenos como “Setor Especial” e considerando-os como espaços sujeitos à preservação e controle específico, áreas de preservação paisagística e, assim, sujeitos a proteção especial.

A Lei 4.013/1985 trata especificamente dos quarteirões 20 e 24, e dos lotes 2 e 3 do quarteirão 39, autorizando a Prefeitura a recebê-los em doação, incorporando-os ao conjunto paisagístico da Serra do Curral e do Parque das Mangabeiras e, finalmente, considerando-os “non aedificandi”.

Nesse sentido foi a conclusão do Diretor Regional da 7ª DR do SPHAN/FNPM, Sr. Cláudio Augusto de Magalhães Alves, datada e assinada em 01/02/1988: “(...) Tendo em vista o exposto neste relatório e considerando: 1) que a Serra do Curral é monumento natural especialmente protegido pela União através do instituto de tombamento; 2) que a legislação de uso e ocupação do solo do Município de Belo Horizonte, em sintonia com os princípios e conceitos que fundamentaram o tombamento da Serra do Curral, caracteriza os terrenos situados acima da Rua José do Patrocínio Pontes, no Bairro das Mangabeiras, como Setor Especial Um (SE-1) e que a Lei Municipal 4.013/1985, especificamente, declara esses terrenos “non aedificandi”; 3) que a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional está indissoluvelmente ligada à preservação da qualidade de vida e, no caso específico, que a Serra do Curral é, a um tempo monumento paisagístico e área de proteção ambiental de singular importância para Belo Horizonte; FICA ESTABELECIDO QUE NOS QUARTEIRÕES DE NÚMEROS 20, 24, 39 E NOS TERRENOS SITUADOS ENTRE ESTES QUARTEIRÕES E A DIVISA DOS MUNICÍPIOS DE BELO HORIZONTE E NOVA LIMA, NO BAIRRO DAS MANGABEIRAS, NÃO SERÃO ADMITIDAS CONSTRUÇÕES ALÉM DAS EDIFICAÇÕES EXISTENTES, ATÉ ESTA DATA, NO QUARTEIRÃO 39. EM CARÁTER EXCEPCIONAL PODERÃO SER ADMITIDAS CONSTRUÇÕES DE INSTALAÇÕES ESPECIALMENTE DESTINADAS A VIGILÂNCIA E À PROTEÇÃO DA FLORA E DA FAUNA, DESDE QUE PREVIAMENTE APROVADAS PELA SECRETARIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL”.

Vale registrar que a legislação foi alterada quando o General Golbery do Couto e Silva, Ministro Chefe da Casa Civil do Governo Militar foi operado de um descolamento de retina pelo Dr. Hilton Rocha, tendo este episódio forçado a liberação de parte da área em debate, ignorando-se o Tombamento Federal de 1960 e mudando-se o Decreto Municipal nº 2.820, que foi modificado pelo Decreto Municipal nº 2.895, de 01/06/1976, com o fim de possibilitar a liberação de espaço para a construção do Instituto de Olhos Hilton Rocha.

O Decreto 2.895 foi considerado inconstitucional, posto que impingido por um representante do regime militar, que ignorou uma lei federal. Contudo, se houve inobservância legal à época do governo militar, esta não se justifica agora, quando dizemos estar vivendo a plena democracia, sob o império das garantias constitucionais asseguradas na Ordem Jurídica e no Estado democrático de direito.

Mas nem mesmo na tão falada democracia, que dizem existir e prevalecer, certos administradores públicos respeitam integralmente as leis. Governantes civis também atropelam a legislação, alteram seus dispositivos e realizam suas vontades individuais. Gestores públicos civis cedem e permitem mineração e instalação de hospital geral na Serra do Curral. Vejamos o acontecido de 2010 em diante:

O Artigo 72 – A, da Lei de Uso e Ocupação do Solo, acrescentado pela Lei nº 9.959/2010 (Artigo 67), dispõe: “A atividade que usufruir do direito de permanência nos termos do art. 72 desta Lei, poderá ser substituída por outra, desde que a nova atividade esteja classificada na mesma Tipologia e no mesmo Grupo, ou em Grupo inferior em que se enquadra a atividade a ser substituída, conforme o Anexo X desta Lei”.

Ou seja, pela lei vigente até então, o antigo Hospital de Olhos Hilton Rocha não poderia ser ampliado para Hospital Geral como pretendia o grupo Oncomed, posto que, no caso de substituição de uso para novo hospital, este deveria se enquadrar no mesmo grupo e tipologia (ser hospital oftalmológico) ou em grupo inferior, I ou II, como clínicas ou postos de saúde, que são usos menos permissivos ou menos danosos, como previsto no anexo da lei. Isso porque o hospital, por estar em uma Área de Diretrizes Especiais, não poderia ser contemplado por ampliação, mas tão somente por modificações internas.

A atividade “hospital” é vedada em vias locais, preferencialmente residenciais, mesmo porque, de bom alvitre, que se respeite a qualidade de vida humana; que se preservem a Serra do Curral, o seu entorno, a encosta, a fauna, a flora e os recursos hídricos; que o poder público pense no coletivo e não apenas na arrecadação de impostos com mais uma obra em lugar impróprio e inadequado; e que os governantes trabalhem na defesa natural do meio ambiente, tal qual assegurado na Constituição da República, em prol das presentes e futuras gerações.  

Mas quem disse que foi assim que aconteceu?  

A mudança de um hospital oftalmológico, de menor movimento, para um hospital de múltiplas atividades, com previsão mínima de 1.500 leitos de luxo, como desejava o grupo Oncomed, com três turnos e muitíssimo maior movimento, com certeza agravaria enormemente a situação da Serra do Curral e do Bairro Mangabeiras, causando um grande aumento do volume de ruídos, de vibrações, de veículos leves e pesados, de odores, de gases, de radiações e de tudo o mais que provoca impacto no ambiente, na flora e na fauna.

Não foi por outra razão que o Governo do Estado de Minas Gerais gravou em Cartório a restrição de uso, no sentido de que no local só poderia funcionar um hospital exclusivamente de oftalmologia, como forma de minimizar os impactos. Mas, enfim, o melhor mesmo teria sido a manutenção integral do Tombamento da Serra do Curral e a proibição geral de quaisquer obras ou construções no entorno, na encosta ou ao longo de toda a área protegida e tombada.

A sociedade tem ciência da problemática do mundo atual e por este motivo entende que para harmonizar a vida das cidades é que existe o zoneamento (divisão da área urbana em zonas), fixando para cada uma delas o gênero e as condições do uso do solo, com o objetivo de obter um desenvolvimento ordenado da cidade.

Assim, os hospitais serão sempre bem-vindos na Zona Hospitalar e não em áreas de proteção e preservação ambiental que, além disso, sejam monumentos paisagístico, natural e cultural, além de representarem um dos mais importantes símbolos da cidade, como é o caso indiscutível da Serra do Curral. 

Outrossim, não procedia, tampouco, o argumento da falta de leitos para justificar um hospital na Serra do Curral. Um exemplo era o Hospital da Previdência (IPSEMG), que reduziu entre 2009 e 2010, sob a gestão do dono do grupo Oncomed, como Diretor de Saúde, o número de leitos de 540 para 141, segundo noticiado pelo Jornal O Tempo, edição de 24/03/2010.

A ilegalidade contra a Serra do Curral prosseguia à guisa da vontade municipal, que trabalhou pela mudança da legislação e inseriu o art. 1, da Lei n 10.630/2013, que alterou o § 2, do art. 14, alínea G da Lei Municipal n 7.166/1996 e que acrescentou ao referido artigo os §§ 1 A, 1 B e 1 C, especificamente no que tange à área de tombamento histórico, paisagístico e cultural e de proteção ambiental compreendida pelo paredão e encostas da Serra do Curral situados na Área de Diretrizes Especiais do Bairro Mangabeiras, tornando possível a construção do hospital geral na Serra do Curral.

Resultado: os moradores travaram forte batalha jurídica contra o grupo Oncomed, mas o empreendedor pressionou a administração pública municipal e seus respectivos órgãos ambientais e implantou o hospital geral na testada da Serra do Curral – Orizonti Hospital Especializado Oncomed -, que funciona com 57 especialidades. Ou seja, nada tirou a ideia fixa do empreendedor e do prefeito de BH da época de construírem o hospital geral Oncomed na fachada da Serra do Curral, com ampla vista da capital. O hospital está funcionando, servindo à sociedade, mas ocorreram violações da legislação, das normas e das restrições então existentes.

Para piorar, o governo de Minas Gerais resolveu autorizar gigantescas atividades por grandes períodos de mineração na Serra do Curral, além das já existentes, que estão transformando a área natural e ambiental em um verdadeiro queijo suíço.

A população de Belo Horizonte mais uma vez foi acintosamente desrespeitada nos seus direitos e interesses coletivos, desta feita pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), que aprovou na madrugada do dia 30/04/2022, por oito votos a favor e quatro contrários, o licenciamento total do Complexo Minerário Serra do Taquaril, que vai explorar a Serra do Curral.

Trata-se de projeto minerário que pretende extrair 31 milhões de toneladas de minério de ferro ao longo de 13 anos em uma área de 102 hectares na Serra do Curral, na região metropolitana de Belo Horizonte. Daí compreender que a devastação ambiental será grande e a degradação não será compensada, como sempre acontece.

A pior parte envolve o fato de que o complexo minerário inclui lavra a céu aberto, unidade de tratamento de minerais a seco e úmido, pilhas de rejeito estéril, estradas internas, bacias de contenção de sedimentos, estrutura administrativa, e a circulação incessante de máquinas e caminhões pesados no local.

A conclusão geral é que antes se faziam as coisas com mais critério e pensando mais na população, mas hoje tudo é resolvido a toque de caixa e o poder público avança, faz a vontade dos empreendedores e contraria a vontade popular. Até quando?

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021).

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Comentários

  1. Estefânia V. da Luz.1 de junho de 2022 às 12:19

    A serra do curral é mesmo muito importante. Imaginem olhar para o alto da afonso pena e não ver mais o topo da serra, da montanha? Que isso? Esses prefeitos e governadores , mais os últimos, não sabem o que fazem e só enxerga dinheiro, dinheiro. Cadê o povo de Bh e de cidades da área da serra? Vamos lutar gente. Vamos batalhar no Judiciário e ir pra câmara dos vereadores e dos deputados estaduais. Vamos acordar essa gente. Parabéns dr. Wilson Campos - defensor da cidadania e do meio ambiente da nossa BH e região. Att: Estefânia V. da Luz.

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  2. Ricardo Bonaventura2 de junho de 2022 às 09:57

    Dr. Wilson Campos o senhor que lutou muito pela Serra do Curral e por outros grandes fragmentos ambientais na cidade sabe que o governo de MG e a PBH fazem o que as mineradoras querem. Sempre foi assim. É muito dinheiro para os cofres e para suas campanhas eleitorais. E os legislativos municipal e estadual não falam nada e ficam com receio de perder a boquinha da contribuição de campanha e se acovardam. É isso. Abraços doutor. At.: Ricardo Bonaventura. BH/Nova Lima.

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