O LADO BOM E CONSERVADOR DA SUPREMA CORTE AMERICANA.

 

Para entender o título do presente artigo é preciso conhecer um pouco da história dos Estados Unidos, da Suprema Corte e da Constituição - o documento de mais de 200 anos que todo magistrado daquele país jura defender.

Os cidadãos americanos têm verdadeiro respeito pela Constituição do país. Ela remonta, em termos históricos, à devoção existente no mundo anglo-saxão pela Magna Carta. Para eles, juízes e sociedade americana, a Constituição não é um documento sujeito a alterações ou à evolução de acordo com o tempo. Trata-se da origem de toda a lei, do estabelecimento formal da “rule of law”, expressão que distingue a civilização da barbárie.

Ao longo das décadas, os juízes da Suprema Corte americana, fossem conservadores ou liberais, transformaram a interpretação constitucional numa forma de ação política. Tal prática, conhecida como “ativismo judicial”, procura suprir as deficiências da lei e do corpo legislativo no Congresso. Determina, por meio da leitura do texto legal e das circunstâncias em que ele foi produzido, mudanças de ordem política nas mais diversas áreas. Em contraposição aos juízes “ativistas”, a escola da “contenção judicial” defende que o papel do Judiciário não é fazer as leis no lugar do Parlamento, mas apenas interpretá-las.

A doutrina preconizada por alguns ministros da Corte americana era uma forma específica de contenção, conhecida como “originalismo” ou, mais precisamente, “textualismo”. O importante, para os textualistas não é a intenção dos legisladores ou dos constitucionalistas ao criar o texto legal, mas apenas o que diz a letra fria da lei. O juiz deve se debruçar sobre ela como um talmudista sobre o texto da Bíblia e ler, nas palavras da Constituição, apenas o que elas dizem, na tentativa de traduzir seu sentido original.

Alguns ministros conservadores da Suprema Corte americana desconfiavam de toda doutrina que tentasse atribuir aos nove sábios da Suprema Corte qualquer poder maior que esse. Julgavam que a alternativa ao “textualismo” resultava numa forma de autoritarismo, solapava a democracia e o poder dos representantes eleitos para legislar. Se alguém deveria ter autoridade sobre mudanças na lei de acordo com o tempo, é o Congresso.

Vale observar que a contenção judicial nem sempre esteve associada aos conservadores. A Suprema Corte que derrubou quase todas as leis do New Deal do presidente Franklin Delano Roosevelt, comandada por Charles Evans Hughes, era um tribunal ativista, de matriz conservadora. A Suprema Corte que manteve as políticas de direitos civis pôs fim à segregação racial e garantiu o direito aos anticoncepcionais, ou seja, ativismo judicial.

Segundo alguns escritores e historiadores americanos, os argumentos sobre a contenção judicial raramente são argumentos de princípio sobre jurisprudência e podem representar uma política por outros meios. Quando a Corte é conservadora, como agora, os acadêmicos liberais tendem a defender a contenção judicial; quando a Corte é liberal, são os conservadores que falam em contenção.

Quando o magistrado Antonin Scalia chegou à Suprema Corte, em 1986, a figura que dominava o ambiente intelectual era o juiz liberal William Brennan, um dos defensores mais vocais da ideia de “Constituição viva”, expressão usada pela primeira vez por Louis Brandeis para qualificar a autonomia dos juízes para interpretar a Constituição à luz dos costumes correntes. A “Constituição viva” é exatamente o oposto do “originalismo”. Brennan acreditava que a missão da Suprema Corte era “a proteção da dignidade do ser humano e o reconhecimento de que cada indivíduo tem direitos fundamentais que o governo não lhe pode negar”.

Desde 1954, quando ordenara o fim da segregação nas escolas no Sul do país, o tribunal vivia uma onda de ativismo judicial liberal sem precedentes. Em 1958, Brennan redigira a sentença de um dos casos centrais dos direitos civis, em que proibia a Guarda Estadual do Arkansas de impedir as crianças negras de Little Rock de frequentar as mesmas aulas que as brancas. Ao longo dos anos 1960, Brennan foi o mentor intelectual das decisões que garantiram a indigentes o direito a advogados, que obrigaram policiais a informar os presos de seus direitos, que deram às mulheres o direito à pílula, depois ao aborto, num caso de repercussões sentidas até hoje.

Durante os anos 1970, os conservadores ficaram relegados a segundo plano nos meios jurídicos. Quando Ronald Reagan assumiu o poder, em 1981, ele viu uma oportunidade de, como Roosevelt tentara no New Deal, refazer a Suprema Corte à sua imagem. Entre os juízes em atividade nos tribunais, selecionou três nomes com cujas decisões tinha afinidade ideológica, que depois viriam a ter uma importância central nos debates jurídicos dos anos 1980. Eram eles: Robert Bork, o formulador da teoria do “originalismo”, Richard Posner e Antonin Scalia.

Dos três, apenas Scalia acabou na Suprema Corte - Posner se revelou liberal demais em matéria de direitos individuais para o gosto de Reagan; e Bork foi rejeitado pelo Congresso, numa das batalhas mais épicas já enfrentadas por um nomeado. Scalia, indicado poucos anos antes, num clima menos polarizado, fora aprovado por unanimidade, apesar de suas credenciais conservadoras serem conhecidas de todos.

Ao chegar à Suprema Corte, o contraste entre Brennan e Scalia não poderia ser maior. Ambos – Brennan, filho de irlandeses; Scalia, filho de italianos – sempre foram católicos devotos. Mas basta examinar a opinião de cada um sobre a separação entre Igreja e Estado para entender a diferença. Brennan escreveu que o objetivo das instituições americanas era criar um “Estado sem religião”, e uma “Igreja sem política”. Em suas decisões, Scalia, aprovou o financiamento do Estado a igrejas e a exibição de símbolos religiosos em órgãos públicos, além de ter afirmado que a metáfora da separação entre Igreja e Estado não está na Constituição nem tem lugar na tradição judiciária americana.

Visto em retrospecto, o longo período de Scalia na Suprema Corte não pode ser considerado tão bem sucedido do ponto de vista político, pois as principais decisões da Era Brennan foram mantidas. Scalia foi voto vencido em temas como aborto e direitos dos homossexuais. No terreno puramente jurídico, porém, sua influência é incontestável. Quando ele chegou ao tribunal, quase todas as decisões faziam referência à história legislativa para justificar a interpretação dada às leis, de acordo com a intenção atribuída aos legisladores no momento da aprovação. Tal prática, um anátema aos olhos de originalistas como Scalia, quase desapareceu. Cinco anos depois de sua chegada à Suprema Corte, as referências a atas das sessões legislativas caíra de 100% a 18%, segundo um estudo citado na New York Review of Books.

Scalia foi o artífice da guinada à direita da Suprema Corte desde os anos 1980. O ápice foi, sem dúvida, a sentença mais controversa já proferida pelo tribunal: a decisão das eleições de 2001, em favor de George W.Bush, contra o democrata Al Gore – “Supere isso”, dizia Scalia sempre que o assunto vinha a tona. Seu intelecto era respeitado mesmo por adversários liberais, como John Paul Stevens ou Ruth Bader Ginsburg, sua melhor amiga na Corte. Ele passava todo réveillon ao lado da família dela e chegou a contracenar com Ruth como figurante numa ópera. Por influência de Scalia, a juíza Elena Kagan, outra liberal, tirou do limbo os especialistas na leitura originalista da Constituição na Faculdade de Direito de Harvard, que comandara antes de ser indicada por Obama para a Suprema Corte. Uma vez no tribunal, também se aproximou de Scalia.

A maior vitória de Scalia foi prevalecer na interpretação da Segunda Emenda, que estabelece o direito ao porte de armas. Apesar de não ter nenhum respaldo histórico, uma decisão de 2008 referendou sua leitura de que ela garante esse direito a indivíduos e não apenas a grupos armados (as “milícias bem preparadas”, citadas no texto original). Mesmo o presidente Obama, favorável ao controle das armas, se curvou à interpretação de Scalia depois que ela foi mantida na Suprema Corte.

Com a morte de Scalia, a disputa eleitoral americana daquele ano adquiriu um novo caráter. O líder republicano no Senado, Mitch McConnell, afirmou que nenhum indicado por Obama seria aprovado e que a vaga só deveria ser preenchida com o novo presidente. Os pré-candidatos Ted Cruz, Marco Rubio, Ben Carson e Donald Trump também afirmaram, de diversos modos, que o assento de Scalia deveria ficar vago até 2017. Obama disse que cumpriria sua obrigação constitucional e faria a indicação, mesmo sabendo do risco de ela ser rechaçada pela maioria de 54 votos que os republicanos mantêm no Senado.

As eleições se transformaram, portanto, numa batalha pelo controle da Suprema Corte. Pela primeira vez em décadas, houve uma chance de ocorrer maioria liberal, pois, mesmo que Obama fracassasse em sua indicação, a favorita a ganhar as eleições seria a democrata Hillary Clinton. Politicamente, portanto, a manobra de querer impedir a indicação feita por Obama poderia gerar uma confusão e se voltaria contra o próprio Partido Republicano.

O grande jurista, magistrado e ministro da Suprema Corte dos EUA, também conservador, originalista e textualista de direita, o Justice Antonin Scalia, faleceu no dia 13 de fevereiro de 2016. Nino para a família e os colegas, deixou um legado fantástico para a doutrina, para o direito e para a justiça americana e mundial. Durante toda a sua vida acadêmica não tirou uma única nota abaixo de “A” – nota máxima no padrão educacional americano. Graduou-se em Direito pela Harvard Law School, magna cum laude. Chegou à Suprema Corte no ano de 1986, e foi confirmado com uma espantosa votação unânime (98 a 0) – fatos que já narrei em outro artigo neste Blog, exclusivamente sobre o notável jurista e Justice.

Embora eu seja conservador, assim como Scalia, confesso que, como simples escriba e advogado militante, não concordo com todas as ideias dele, mas concordo com a maioria. As capacidades interpretativa, intelectual e a coerência de Scalia sempre foram admiráveis.

O mais impressionante e positivo era que ele, o Justice, acreditava na interpretação da lei partindo do texto. Ou seja, as palavras tinham sentido e aos magistrados não cabia subverter o significado de modo a impor suas ideias. Tudo deveria começar com a literalidade. Preconizava, também, a visão dos Founding Fathers para a aplicação da lei. Não fosse só isso, Antonin Scalia combatia, com grande eloquência, o Ativismo Judicial. Sobre a Tese da Living Constitution (Constituição viva), Scalia costumava vaticinar: “Instead of a Living Constitution; I prefer a dead one” (em tradução livre: “ao invés de uma constituição viva; eu prefiro uma morta”.

Dizem que, conquanto fosse conhecido como conservador, juridicamente, Scalia não era contra, e.g., o aborto ou o casamento de pessoas do mesmo sexo. Apenas, em respeito à separação dos poderes, atribuía essas questões aos legisladores (representantes do povo). Ou seja, Scalia não adotava nem admitia o ativismo judicial e tratava objetivamente da interpretação literal da Constituição. Exercia com primor sua função de magistrado e deixava as leis e mudanças de leis para os legisladores eleitos pelo povo do seu país. Simples assim.

Segundo pesquisas realizadas, Scalia deixou uma bela obra para os estudantes de Direito: A Matter of Interpretation, Making your Case – The Art of Persuading Judges, e, ainda, Reading Law: The Interpretation of Legal Texts. Mas com a morte do Justice, a Suprema Corte americana e a comunidade jurídica internacional perderam um profundo conhecedor do Direito e um notável julgador.

Na Suprema Corte dos EUA, rachada ao meio entre “conservadores” e “liberais”, Scalia era previsivelmente conservador em todos os temas.

O conservadorismo na Suprema Corte americana deu e continuará dando mostras de força, mas nem por isso os magistrados conservadores deixam de votar matérias “liberais”, como se deu em algumas situações, como a defesa do direito dos réus, e como se viu na polarizada política americana, em que juízes da Suprema Corte se transformaram num poder à parte, capaz de decidir até uma eleição presidencial (Bush versus Gore, em 2001).

Lá, como cá, existem erros de rumo, embora lá a Constituição seja motivo de devoção e cumprimento. Lado outro, em temas como aborto, porte de armas, liberdades religiosas, entre outros polêmicos, a Suprema Corte dos Estados Unidos deu, desde sua reforma por Donald Trump, uma guinada à direita. O conservadorismo impera, apesar das diferentes correntes dentro da instituição.

A maioria de direita que está à frente do Supremo americano há alguns anos, avançou cautelosamente no início, mas não está mais parando e implementa seu programa político conservador a toda velocidade, também em questões de migração ou direito penal. A Corte americana está, assim, na vanguarda da propalada “guerra cultural” que divide os Estados Unidos em dois campos aparentemente irreconciliáveis.

Enfim, percebe-se que as Cortes americana e brasileira são diferentes em quase tudo. Lá, a predominância da direita, do conservadorismo, do textualismo e do originalismo. Aqui, a predominância da esquerda e do ativismo judicial e político, sem obediência integral à letra fria das leis vigentes. Lá, o respeito ao legislador e ao povo que o elegeu. Aqui, o desrespeito ao legislador, ao limite de competência e ao devido processo legal, com a relevância da pior parte que é a de se fazer interpretação rasa e pessoal da Constituição.

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021).

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Comentários

  1. Cyntia M. Albuquerque S.26 de julho de 2023 às 14:08

    Deus queira tenhamos uma Corte assim aqui algum dia - conservadora, textualista, cumpridora da Constituição e sem ativismo político e que dê preferência para falar só nos autos dos processos. Deus queira Dr. Wilson Campos. Deus queira. Att: Cyntia Albuquerque (prof/adv). MG/SP.

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  2. Parabéns pelo BLOG doutor Wilson Campos - advogado, e pelas notícias qui veiculadas. Excelentes todos os artigos, Parabéns!!! Abr. Vicente Luna.

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