CRIME OU OMISSÃO TRIBUTÁRIA, EIS A QUESTÃO.

Não é nenhuma novidade que a carga tributária no Brasil é elevadíssima e, por conseguinte, atrasa sobremaneira o desenvolvimento do país. Um terço dos lucros tributáveis vai para os cofres públicos. Os crimes tributários acontecem aqui e ali. As complexas leis fiscais, que dão margem a erros de cálculo que podem ser interpretados como crime, se somam ao rol dos itens da tumultuada vida fiscal da empresa.

Saiba que inadimplência fiscal é diferente de crime tributário. No primeiro caso, o empresário trabalha e atrasa o recolhimento dos impostos. No segundo, a fraude na apuração dos impostos é passível de multa ou até mesmo reclusão. Daí que a Lei 8.137/1990 entra em campo e define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo. 

O crime tributário se trata de fraude no acerto de contas de tributos devidos ao Estado. Os crimes mais comuns e mais conhecidos são: sonegação fiscal; conluio; fraude; não emissão de notas fiscais em negócios comerciais; e o ato de inutilizar documentos e livros fiscais.

Muito bem. Tudo isso se origina de legislação própria. O Poder Legislativo tem essa função de legislar, criar leis, elaborar e mudar leis. Mas o Judiciário vem ultrapassando limites, intervindo em legislações e excedendo na sua competência, o que tem causado insegurança jurídica

Observemos o que diz Kiyoshi Harada (adv. tributarista) sobre certo acontecimento na seara tributária: 

"Como todos sabem o STF considerou incurso no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90 o devedor contumaz do ICMS declarado.

De fato, por maioria de votos, a Suprema Corte fixou a seguinte frase: "o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990". (RHC nº 163334, Dje de 12-11-2020).

Prescreve o citado art. 2º, inciso II da lei 8.137/90:

"Art. 2º Constitui crime da mesma natureza

[...]

II- Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher os cofres públicos."

Como se verifica, o crime se consuma com a simples omissão, isto é, deixar de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado. Não precisa ser devedor contumaz que, por si só, não configura crime. Trata-se de crime omissivo próprio não comportando a figura da tentativa.

Tributo descontado significa aquele que se dá mediante retenção na fonte.

A legislação de cada ente político define os casos de retenção na fonte. A legislação do imposto de renda obriga a fonte pagadora reter o imposto devido pelos destinatários dos rendimentos (empregados, trabalhadores autônomos e avulsos). A legislação previdenciária, igualmente, impõe o dever de a fonte reter a contribuição previdenciária devida.

Tributo cobrado, por sua vez, decorre do regime de substituição tributária com fundamento no §7º, do art. 150 da CF. Com base no fato gerador presumido é autorizado o legislador ordinário nomear como responsável tributário pessoa indiretamente vinculado ao fato gerador da obrigação tributária e dele exigir o pagamento antecipado do imposto.

Por exemplo, a montadora de veículo deve cobrar do adquirente o ICMS que seria devido na revenda do veículo. e recolher o imposto no prazo legal.

Se o imposto cobrado do revendedor não for recolhido caracteriza-se o crime de apropriação indébita do imposto. O não recolhimento do imposto devido na operação própria da montadora configura tão somente situação de devedor de imposto.

O crime do inciso II, do art. 2º da lei 8.137/90 pressupõe relação jurídica que se desenvolve entre contribuintes do imposto. Somente nessa hipótese é que cabe tanto reter o imposto mediante desconto, como também cobrar o imposto.

Não faz sentido reter ou cobrar o imposto do consumidor final que não é contribuinte do imposto e, portanto, não pode sofrer retenção, desconto ou cobrança do imposto.

Todo tributo indireto repercute na política de formação do preço. O destaque do ICMS na nota fiscal, por exemplo, não significa recebimento pelo vendedor do imposto destacado que só serve para o contribuinte apurar o valor do imposto a ser pago no final do mês, mediante operação aritmética de crédito do imposto pelas entradas de mercadorias e de débitos do imposto pelas saídas de mercadoria no mesmo período.

Não é jurídico afirmar que o vendedor recebeu o ICMS do consumidor final. O vendedor apenas recebe o preço da mercadoria no qual se encontra repercutido o valor do imposto, as despesas com a folha, as despesas administrativas, inclusive o lucro da operação de compra e venda etc.

Não sendo o consumidor final contribuinte do imposto não há possibilidade jurídica de  descontar ou dele cobrar o ICMS. O desconto do imposto mediante retenção na fonte ou a cobrança do imposto é operação que somente é passível de ocorrência entre os contribuintes do imposto.

O crime em tela só é possível em relação às operações de substituição tributária em que o contribuinte substituinte cobra antecipadamente do contribuinte substituído o imposto que seria devido por ocasião da revendo da mercadoria adquirida, com fundamento no fato gerador presumido (§ 7º, do art. 150 da CF). No caso, o estabelecimento substituinte recolhe o ICMS das operações próprias, na condição de contribuinte, ao mesmo tempo que recolhe o ICMS cobrado do estabelecimento substituído, na condição de responsável tributário.

O STF equiparou o ato de receber o imposto embutido no preço ao ato de cobrar o imposto, para efeito de fazer incidir a norma penal tipificada. Procedeu, na verdade, uma "industrialização" dos fatos.

Ora, o verbo cobrar e o verbo receber  não são sinônimos. Não há como o vendedor cobrar imposto do consumidor que não é contribuinte. O vendedor, que não detém o poder de tributar, só pode cobrar o imposto de quem quer que seja, na única excepcional hipótese de substituição tributária por expressa determinação legal, revestindo a condição de responsável tributário (art. 121, parágrafo único, inciso II, c.c. art. 128 do CTN e § 7º, do art. 150 da CF). Fora desse contexto a tese da apropriação indébita do ICMS só seria possível no sistema de tributação por fora vigente nos Estados Unidos  e no Japão, onde o imposto é recolhido pelo comerciante ou tomador de serviços separadamente, sem integrar o valor do preço do produto ou do serviços, conforme afirmamos em nossa obra.

Criminalizando a conduta do contribuinte, devedor contumaz do ICMS declarado e não recolhido, o STF, com certeza, inaugurou uma nova política criminal tributária adentrando no campo reservado ao legislador, no que foi sacramentado recentemente pelo STJ que editou a Súmula 658 mais adiante transcrita.

E isso é gravíssimo porque no direito penal vigora o princípio da tipicidade cerrada, desde o tempo do Marques de  Beccaria, iluminista do século XVII, autor do livro "Dos Delitos e das Penas". Nullum crimen sine lege. Não há crime sem lei; não há crime por analogia, muito menos por construção pretoriana. A Corte Suprema reescreveu a norma do inciso II, do art. 2º da lei 8.137/90.

Essa equivocada jurisprudência do STF poderá alterar o comportamento do contribuinte em dificuldade financeira para se abster de escriturar as operações de entrada e de saída das mercadorias deixando de apurar o imposto devido. Em isso acontecendo caberá ao fisco a árdua e difícílima tarefa de fiscalização presencial para levantar toda a atividade do contribuinte omisso para ao final do processo administrativo tributário, onde se discute o crédito tributário apurado pelo fisco, ingressar com a representação penal por crime contra a ordem tributária. É bem diferente de decretar a prisão de quem escriturou seus livros fiscais informando o fisco do montante do imposto devido. Se grande parte dos contribuintes for por esse caminho, para se verem livres de prisão imediata, ficará inviável a cobrança por meio de lançamento de ofício.

A criminalização da conduta do devedor contumaz de ICMS declarado afronta o Pacto de São José da Costa Rica de que é signatário o Brasil, cujo art. 7º, item 7 veda a prisão por dívida.

O colendo STJ, que antes tinha posições conflitantes (5ª turma e 6ª turma) após a decisão plenária do STF passou a criminalizar o devedor do ICMS tanto nas operações próprias, como nas operações de substituição tributária, conforme decisão da 3ª seção, mas exigindo-se os requisitos de "devedor contumaz e de dolo de apropriação do imposto", sob pena de descaracterização do crime (Resp 1867109, 6ª turma).

Lamentável que o Tribunal da Cidadania tenha que seguir a orientação do STF mesmo na matéria de interpretação de norma infraconstitucional onde o STJ é soberano.

Recentemente o STJ editou a Súmula 658 do seguinte teor:

"O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária."

A redação da Súmula enseja dúvidas.  A final exige ou não que a conduta do agente seja a de um devedor contumaz e exteriorizador do dolo de apropriação do imposto, conforme jurisprudência firmada pela 6ª turma no Resp 1867109.

Se aplicar a conduta qualificada para ambas as hipóteses estará havendo, igualmente, nova inovação do texto legal, o do inciso II,  do art. 2º da lei 8.137/90 em que bastará simples omissão de recolhimento do ICMS cobrado antecipadamente do contribuinte-substituído. Se o substituinte cobra o imposto do substituído e não recolhe esse imposto no prazo legal, ipso facto,  caracterizado estará o crime de apropriação indébita tributária. Não é preciso ser devedor contumaz do imposto.

Sempre que a jurisprudência substitui o legislador no ato de legislar, a pretexto de interpretar a lei, traz insegurança jurídica porque os membros do Judiciário não têm a mesma experiência, nem a vocação dos agentes públicos encarregados da tarefa de elaborar as leis.

Esperamos que o STF, agora, com nova composição reveja essa equivocada jurisprudência que se formou no julgamento do RHC 163.334, por maioria de votos e que contraria o Pacto de São José da Costa Rica. Os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, acertadamente, proviam o HC para trancar a ação penal".

Portanto, como visto, o risco da ingerência do Judiciário na área do legislador é causar insegurança jurídica. Isso precisa ser corrigido.

Fonte: Migalhas, por Kiyoshi Harada (adv. tributarista).

Wilson Campos (Advogado/Especialista com atuação nas áreas de Direito Tributário, Trabalhista, Cível e Ambiental/ Presidente da Comissão de Defesa da Cidadania e dos Interesses Coletivos da Sociedade, da OAB/MG, de 2013 a 2021/Delegado de Prerrogativas da OAB/MG, de 2019 a 2021). 

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Comentários

  1. O Judiciário deveria vir agora e explicar essa bagunça causada pelo STJ e STF porque ninguém aguenta essa infinidade de JURISPRUDÊNCIA QUE DERRUBA JURISPRUDÊNCIA, QUE DERRUBA ARTIGOS DO CTN, QUE DERRUBA ENTENDIMENTOS ANTERIORES, E QUE VIROU UMA BADERNA ESSA ÁREA TRIBUTÁRIA. Cadê a desburocratização tributária junto com a reforma tributária do PT? Cadê a simplificação que deveria vir junto da reforma? Dr. Wilson Campos, o senhor que é advogado e tributarista também entende nossa penúria e nosso sofrimento para manter legais os documentos fiscais e contábeis de uma empresa. Difícil!!! ESF contábil.

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  2. Tenho uma empresa que emprega 42 empregados diretos. Pago todos os impostos mensalmente. Recentemente recebi uma notificação da receita estadual de que minha empresa estaria devendo certa importância por erro de recolhimento de tributo. Imediatamente chamei o contador e conversamos e ele discordou da interpretação do Fisco estadual. Ele foi à receita estadual e depois de muitas horas esperando foi atendido por um fiscal sem educação e mal humorado que disse que tinha de pagar e não tinha como retirar a autuação fiscal. O contador discordou e quis explicar e o fiscal não deixou e saiu simplesmente da sala com a maior falta de educação já vista por parte um servidor público. Sujeito folgado, irresponsável, que não poderia jamais estar ali representando o Estado. Depois disso, passados uns 15 dias recebi na minha empresa uma intimação de Cartório de Protestos para pagar a tal dívida que eu não devia. O título foi protestado. Fui para a Justiça pelo meu advogado e pedi a liminar de tutela antecipada como disse o advogado. A Justiça negou. Entendeu? A Justiça simplesmente negou e com isso o CNPJ de minha empresa está lá no Protesto com inscrição de não pagamento do título protestado. A Justiça não acreditou em mim na minha empresa de mais de 30 anos, mas acreditou no fiscal sem educação do Estado. Agora eu que me vire para continuar empregando e gerando rendas para esse país. Eu que me vire para justificar essa injustiça com meus fornecedores.Eu que me vire para explicar ao banco o que aconteceu e que não devo, e se for julgado devedor mais tarde, vou protestar publicamente pela entidade empresarial e só pagar parceladamente, ou seja pagar o que não devo porque a fiscalização é falha e a justiça é falha também. Quem aguente isso pelo amor de Deus, quem aguenta? Dr. Wilson Campos advogado obrigado por sua sempre cordial atenção e explicações nos seus artigos, gratidão. Sérgio Hidalgo.

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